Autor: Ferreira Gullar
Editora: José Olympio, 1986
Páginas: 72
Se poesia é margem, o que dizer quando o poema é a margem da margem? Quando até o poema assume que aquilo que foi colocado sobre o papel não é exatamente uma obra, mas o retrato do limite entre o que foi escrito anteriormente e aquilo que há de vir mais para frente? Pois é assim que Ferreira Gullar trata Crime na Flora em seu prefácio: trata-se de uma obra num período de “crise”, com impressão de que “não se escreveria mais poesia”, pois era a tentativa de “fazer uma poesia que não fosse apenas um discurso sobre a realidade, mas ela mesma, uma realidade”. Acontece é que da crise, mais uma vez, se fez arte.
Crime na Flora é um longo poema em prosa, ou uma prosa poética, de Ferreira Gullar, escrito em sua maior parte logo após o lançamento de Luta Corporal (1954), conhecida obra do autor. Guardado na gaveta durante trinte anos, finalmente o poeta resolveu recolher o manuscrito, reler, reescrever algumas partes, acrescentar outras e, por fim, publicar. Por conta disso, trata-se de uma obra que resistiu e ressurgiu no tempo.
O que se pode dizer sobre um pretenso enredo é: há um crime na flora. Um corpo (ou vários, ou muitos ou o mesmo em épocas diferentes) é encontrado por diversas pessoas em um descampado, por cima de umas flores e a obra vai girar em torno da reflexão desse corpo encontrado, dessa vida que se foi, dos restos dos corpos apodrecendo e da possibilidade de se produzir vida nesta morte. A pergunta que parece pairar é: após a morte, o que fazer com o corpo dos mortos?
Os resultados serão diversos: uns cavam, outros transam, outros filosofam, outros se curvam. E como num coro de possibilidades, todos os corpos são velados, desvelados e revelados por esses seres que atravessam a morte. Em um belo trecho, há até uma visão dupla de um corpo que se mistura entre os gêneros. Homem e mulher em síntese ou, pelo oposto, em metamorfose, tal como em Orlando, de Virgínia Woolf:
Eram seis de uma tarde de vento escasso. Aquele jovem dormia em cima das flores, como se tudo ali só existisse porque ele dormia, as flores e o corpo, invenções de seu sono. O lugar era deserto e eu quis examinar-lhe a ferida. A ponta da seta, negra, rasgava-lhe o ventre ainda onde chegam os cabelos do pentelho. Desci-lhe mais a calça e observei que o sexo era de uma moça, e belo demais para estar morto.
E assim, “no cu do tempo some a primavera”, somem as estações e ficam ranços e restos e corpos que se misturam à terra. A morte, aquela morte, aos poucos, se revela como algo produzido, uma arma, um tiro, um elmo de soldado do estado:
Um parabélum automático brilhou no vão da folhagem apontado para suas costas; o metal mortal da arma tantas vezes usada pela pátria agora se reunia instantâneo contra aquela moça na flor
no negror do jardim o negror da arma
o negror desta fome do homem
E assim o poema se dualiza entre essas duas forças: a flora e o elmo. O Crime na Flora ou seu segundo nome: Ordem e Progresso, mostrando que crime e flora, instâncias absolutamente distintas, são faces da mesma lei: o sonho e a força.
FLORA E ELMO
FLORELMO
mel e flora
elmo em flor
(há um nome sob uma pedra
na flora
há um nome
sob uma pedra
na flora há um nome
sob uma pedra)
Por se tratar de uma obra de “limiar” dentro da carreira de Gullar, percebe-se já aquilo que seria o germe de seu Poema Sujo, como o ímpeto nos termos, o vocabulário escolhido à mão para secura e uma vontade de enfrentar um mundo e uma natureza que resistem. Trata-se de uma obra intensa e exemplar de quem tenta ir de encontro às coisas e ao mundo. Esta força pode se resumir em uma frase:
O que sustenta as coisas é a sua vontade de vingança contra nós. Elas duram de propósito.
Postado originalmente no Indique um Livro