Autor: Raduan Nassar
Editora: Companhia das Letras, 2016
Páginas: 70
A literatura é imoral. O ser humano é, por essência, imoral. Ambos em uma simbiose inseparável são uma explosão de formas em eterna latência, que não se dissolvem e se acumulam como força, poder, raiva, pulsão, energia. No entanto, o mundo das coisas, as instituições, os projetos de vida, as igrejas, a família, ou seja, todas as instâncias da vida comum, da vida dos outros, servem de instrumentos de controle, de manetes que guiam nosso corpo para um gesto comum: da passividade, da resignação. Um Copo de Cólera é um cuspe na cara do mundo.
Um Copo de Cólera, de Raduan Nassar, é sobre um homem, ou a mente narradora de um homem, e uma mulher com quem trava uma briga, aparentemente comum, mas que revela todas as dimensões sociais de um ser frente o mundo e o outro. De capítulos diretos, como os iniciais A Chegada e O Banho, em que um corpo que deseja e procura o desejo encerrado pela vida aparece; e o grande capítulo, O Esporro, em que a briga se deflagra sem pudores, Raduan encerra, na linguagem, uma das mais árduas tarefas literárias: ser escrito – ou inscrito -, ao invés de escrever.
O mais interessante da obra está no fato dessa personagem masculina possuir um corpo absolutamente insurgente que não cabe dentro de si. Além disso, ele faz questão de ressaltar que toda sua força que explode, sua pulsão, não vem de um sentimento, de uma mera paixão, mas de um objeto direto da razão, de uma escolha:
“se metera a regular também o mercúrio da racionalidade, sem suspeitar que minha razão naquele momento trabalhava a todo vapor, suspeitando menos ainda que a razão jamais é fria e sem paixão, só pensando o contrário quem alcança na reflexão o miolo propulsor, pra ver se isso é realmente penetrante. “(p.29)
E tendo de encarar a frase cuspida da moça que diz que ele “se transforma em um fascista”, este ser vai apontar todas as hipocrisias do discurso organizado da moça, seu corpinho arrumado, seu jeitinho preparado por anos, sua profissão que visa “fazer o bem”, e suas reflexões que não passam “de excreção totalmente enobrecida do drama da existência.” (p.34)
Na verdade, Raduan aproxima este homem que vence seus extratos e ultrapassa esta dimensão de uma humanidade humanista, através de uma crítica direta a uma ordem e uma moral. Se o homem é um ser que se constrói na moral, é preciso deixar de ser homem, ou ultrapassar o homem através de sua amoralidade (uma etapa acima da imoralidade). Assim, sua crítica parte da estranha ordem animal das formigas, para o caos que só a animalidade pode propiciar:
“as malditas insetas me tinham entrado por tudo o que era olheiro, pela vista, pelas narinas, pelas orelhas, pelo buraco das orelhas especialmente” e alguém tinha de pagar, alguém sempre tem que pagar queira ou não, era esse um dos axiomas da vida, era esse o suporte espontâneo da cólera.” (p.35)
Esta cólera é instrumento também para desorganizar o estatuto moral das coisas. Da ideia de ciência, da sequência do tempo, cujo nome damos de história:
“o que conta mesmo na vida é a qualidade da descida; não me venha pois com destino, sina, carma, cicatriz, marca, ferrete, estigma, toda essa parafernália enfim que você bizarramente batiza de história”, na medida em que, na verdade a “álgebra tropical” – e brasileira – é feita, na verdade, de “sangue e areia”, afinal “o povo fala e pensa , em geral, por ele mesmo, quando fala (como falo) com o corpo.”(p. 45 – 47)
Na verdade, este homem cujo corpo não se conforma com o mundo e com as instituições, chega a conclusão de que toda moralidade é excessivamente humana e, neste sentido, seria preciso vencer esta “humanidade”, talvez indo ao encontro do Super-Homem de Nietzsche, “para além do bem e do mal”, na desmontagem da instância moral, das regras sociais, da “mera vida”. Sua conclusão é a de que “toda ordem privilegia” (p.48) e, por isso, alguém precisa assumir esse papel de vilão, na medida em que o que mais há são pessoas que insistem neste bem, nesta ideia pacífica de que as coisas se resolvem pelo acordo humano.
Seu esforço de transpor essa linha de uma moral para uma amoralidade cai na percepção de que “não reconheço em ninguém – absolutamente ninguém – qualidade moral para medir meus atos”(p.41). Assim, com todos as convenções, regras e paradigmas superados, este ser atinge o limite da cólera que se resume a um adeus a um certo tipo de mundo e uma vivência absoluta de um pathos, via razão, como ele faz questão, e de um corpo pulsante capaz de enfrentar o abismo humano. Este abismo, pode ser uma solidão, no entanto, nunca será um vazio, um lugar desabitado, talvez seja de uma solidão essencial, primordial.
Um Copo de Cólera é um livro esporro. É um esporro em livro. É um ato de coragem que poucos serão capazes de cumprir. E muitos dos que cumprirem, talvez não sejam capazes de sequer contar essa história. A morte é uma fronteira próxima e breve demais.
Postado originalmente no Indique um Livro
Foto de capa: Catálise Crítica