Jesus começou a ser um tema delicado na escola quando, ao terceiro dia de aula, uma das crianças apontou pra porta da sala e disse: Tia, Deus tá indo embora. A professora olhou pra trás e viu Jesus com a mochila nas costas, tomando o rumo da rua como se não houvesse coisa mais normal, até que disseram o nome do filho de deus e o bendito saiu vazado correndo, para ver se conseguia fugir antes que lhe alcançassem. Acabou que pegaram Jesus pelo braço e lhe rezaram um baita sermão, dizendo que criança de cinco anos não tem idade pra ir sozinha e só sai dali com familiar. Steffany, mãe de Jesus, buscou o menino mais tarde, ouviu a história e respondeu com os ombros: Esse daqui é terrível, mesmo.
Ela não mentiu. O Cristo clássico descontrolou-se no braço apenas uma vez, até onde sabemos, com os comerciantes num templo, o que é completamente justificável e alguns até esperam um retorno pra que açoite os templos comerciais de hoje. Já o nosso filho de deus moderno era braços, pernas, uma voz executada em moldes fofos ou gritos estridentes de choro. Castigava pecados nos colegas que apenas ele via, e os aplicava em chutes, beliscões, puxadas de cabelo, socos e em três ocasiões proporcionou visões deslumbrantes à professora de uma espécie de voadora, parecendo um peixinho gordo tentando pular da água e se sustentar no ar – em todas, felizmente não atingiu nenhum colega e contentou-se em cair feito fruta madura no chão, abrindo o bocão para chorar ao redor mas fechando imediatamente porque não percebeu que o viam. Esta era uma característica teatral de Jesus que, ao contrário de seu sósia nazareno, cujo único escrito, nas areias, foi completamente apagado pelas ondas, era plenamente satisfeito em mostrar a tudo e a todos o manifesto de suas vontades e caprichos; que diga-o os rabiscos nas paredes da sala, feitos com não tanto esmero e expressando absolutamente uma habilidade que, se não era de desenhar, era de escolher os materiais mais difíceis de serem apagados.
O tempo, que sujeita qualquer costume às regras, com Jesus fez na verdade a ciência de onde estavam os regulamentos para que pudesse desafiá-los. Bastava um acordo que ele logo estava lá para quebrar, seja às escondidas, às claras e escancaradas, ou mesmo implorando num berreiro interminável de criança mimada que não parecia ser. Se não era hora de brincar, insistia em sair. Se era para guardar os brinquedos, aí sim decidia espalhá-los. O inspetor falava Não corre, e ele logicamente tacava sebo nas canelas. E se diziam pra que não chorasse de birra, aí que chorava mesmo. Acabamos por chegar a uma trégua silenciosa, por cansaço mútuo, em jogos de psicologia reversa que iam amenizando o comportamento. A mãe, porém, vinha buscar, via o filho silencioso e explicava: quem vê pensa, Jesus! Quem não te conhece que te compre. A teoria dela era de que o filho só tinha parado porque viu que esperavam dele a já armada bagunça, então pra contrariar começou a fazer menos. Esse daqui, dizia, nasceu ruim feito diabo. Ô bichinho ruim de obedecer. Cleyton (pai de Jesus) era essa desgraça também quando moleque.
Porém, veio esse texto mais para redimir a imagem do filho de deus do que para acusa-la das memoráveis infrações. Jesus foi visto na escola uma vez em plena compenetração, hipnotizado por uma paixão que só por Deus ou por Cristo há de se saber as origens e desdobramentos.
Passamos por reformas durante um mês, construindo uma sala à parte para uso de jogos. Bem, nós não. Citei anteriormente os templos comerciais, mas um Jesus açoitador e apocalíptico seria também de bom uso para as políticas comerciais. A secretaria da educação veio no ano das eleições e disse: que se faça a sala. E tijolo por tijolo, licitação por licitação, ergueu-se a bela sala. E a secretaria olhou para sua obra e disse: é bela. Mas apercebeu-se que um muro a cobria dos olhares da comunidade. Então a secretaria, que se ergue também tem poder de derrubar, disse: que se desfaça o muro.
Chegaram no dia posterior dois pedreiros, duas marretonas, e já de manhã foram esmurrando a construção. Ficaram todos hipnotizados pelo episódio: demoramos dois anos e seis ofícios para conseguir convencer a secretaria de que o muro era necessário, mas bastou um único dia e uma única ordem em ano de eleição para botá-lo abaixo em menos de uma única manhã. Nem vimos se aproximar dali uma figura pequena, ainda mais atraída que nós pelo episódio, um dedo na boca e uma fascinação pelo ato. Era Jesus, e a derrubada do muro o atraíra para fora da sala.
Demorou um pouco para que mandassem alguém tirá-lo de lá, por causa de todas as lascas e pedras voando, e talvez isso fosse pelo assombramento de ver a mais cínica e cética das figuras se prostrar admirada diante de algo. O que as leituras, as contagens, a recitações e os jogos lúdicos afastavam Jesus, atraia-o aquela demolição súbita em sua manhã. Para nós, aquele era o fruto da burocracia e do voto, mas para Jesus era a súbita e espontânea derrubada, chegando ali como um funcionamento orgânico com mundo: os adultos vão, constroem um negócio ali, mas é só esperar que daqui a pouco dá pra destruir outro aqui. Alguma revelação divina foi feita ali, bastava ver o dedo na boca entreaberta, hábito que perdemos mas, se mantido, revelaria e muito os estupores do espírito humano.
Passado o assombramento, contudo, basta dizer que foi tirado dali o menino e o muro, um silencioso e passivo ao destino, o outro contrariado, aberto numa choradeira sem fim e em gritos de: me deixa, eu quero ir lá, quero dirrubá, me solta, me solta. Após flagrarmos o ilustre filho do pai batendo nas paredes com as mãos, para ver se conseguia mover alguma coisa, decidiu-se que era só agir como se aquilo fosse esperado da parte dele – dito e feito! Foi ver nossa presunção que o garoto parou de bater de novo nas paredes e retraiu-se em seu cinismo ensaiado e bico de papagaio. Porém de vez em quando dá pra ver que ele vai com a turma na sala de jogos e espia a janela, memoroso não do muro que estava, mas do muro enquanto deixava de estar. Depois vê que o olham e senta de novo, olhando para as peças na mesa com emburrado tédio, tão contrariado às coisas que já nem sabe mais o que derrubar.