A literatura americana do pós-guerra traduz uma série de lutas de grupos de minorias tentando sobreviver ao chamado “sonho americano” que excluía muita gente do tal sonho. O livro A Cor Púrpura, de Alice Walker, embora lançado tardiamente a outros como Black Boy, de Richard Wright, se tornou um dos mais conhecidos da situação dos negros americanos, principalmente em estados mais conservadores do sul dos Estados Unidos. A maior violência de A Cor Púrpura, me parece, está na fragilidade da narrativa de uma mulher que se coloca, no fim das contas, como uma potência da narrativa como enfrentamento do mundo.
Eu sei o queu tô pensando, eu penso. Nada. E cada vez mais nada se eu conseguir.
A Cor Púrpura, de Alice Walker, conta a história de Celie, uma mulher negra do Sul dos Estados Unidos, que viveu por entre 1900 e 1940. Celie, estuprada pelo pai, casada com um homem que lhe batia – Sinhô (que queria mesmo casar com sua irmã, fugida) – uma figura típica dos coronéis, se vê diante das agruras que os negros passaram no começo do século: pobreza, falta de educação, de perspectiva, em um mundo de plena ausência do estado e da lei. O que torna toda situação ainda pior, dentro deste mundo de homens, é que Celie é uma mulher. Com uma organização própria do universo masculino, patriarcal, as mulheres dentro da sociedade tinham “funções”: cuidar da casa, ser recatada, quase não aparecer na rua. No entanto, dentro destas violências, e somente a partir delas, uma força pode surgir, uma força que se traduz em vontade de viver.
A vida de Celie, desde o começo, se dá nesta oposição básica entre “o mundo do lar”, e o mundo da rua, do homem, em que ela não podia jamais transpor, com a pena de ser espancada:
Ele me bateu hoje porque disse queu pisquei prum rapaz na igreja. Eu podia tá cum uma coisa no olho, mas eu num pisquei. Eu nem olho prus home. Essa é que é a verdade. Eu olho pras mulher, sim, porque num tenho medo delas.
Isto coloca Celie em um lugar em que homens são ameaças, seres que impedem que ela possa sequer viver em paz. No entanto, não há apenas mulheres fracas na obra: Shug Avery, uma cantora, sexy, de belos cabelos, é a ponta extrema de Celie. Shug conseguiu sair deste mundo e foi para a rua. Embora não fosse vista como mulher para casar, conseguia seduzir os homens e exercer algum poder sobre eles, como Sinhô. E é disto que trata A Cor Púrpura, do óbvio deixando de ser óbvio, da mulher saindo do lugar em que estava posta a partir daquilo que elas descobrem.
A partir deste momento, em que vemos Shug adentrar o mundo de Celie, o que se vê é uma gradual e lenta inversão deste lugar da mulher: Sofia, esposa do filho de Sinhô também vai se colocar frente ao poder e tentar toma-lo para si. O mesmo que, por fim, acontece com Celie, ao descobrir que Sinhô escondia as cartas de sua irmã desaparecida, que morava na África como missionária.
O livro, escrito em formas de cartas para Deus e depois para Nettie – pois Deus é aquele que não escuta -, mostra a trajetória de uma mulher, como ela mesma diz “feia, preta e pobre” tentando achar seu lugar no mundo. E qual seria esta mulher? Seria Shug, Sofia, Nettie, Celie? Creio que todas elas que dizem pela boca de Celie:
Minha pele é escura. Meu nariz é apenas um nariz. Meu lábio é só um lábio. Meu corpo é só um corpo de mulher passando pelas mudança da idade. Nada especial aqui para alguém amar. Nada de cabelos enrolado cor de mel, nada de bunitinho. Nada novo ou jovem. Mas meu coração deve ser novo e jovem pois parece que ele floresce com a vida.
A vida encontra sua saída. Este é, talvez, o ponto principal do livro. Se é utópico, é porque a vida – ou a literatura que é vida – precisam achar algum caminho para a esperança. Se a vida não consegue ser assim, tal como na vida de Celie…bom, que a gente mude a vida. Uma obra essencial.
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Postado originalmente no Indique um Livro
Foto: Blog Colorindo Nuvens