Leituras #5: Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva

Editora: Brasiliense
Páginas: 232
Lançamento: 1982
Nota:
3,5/5

“Samba, praia e futebol dão charme pra esse país com fome, doença e repressão.”
Marcelo Rubens Paiva

 

Às vezes a gente tem. Às vezes a gente perde o que tem em segundos e depois precisa aprender a viver sem ter. Ter, nesse caso, não tem a ver como posse, mas com uso, possibilidade, movimento, transformação. Às vezes a gente tem, mas não é, às vezes a gente quer ter, mas falta existência. Acontece que o acaso e o destino, em alguns casos, tiram da gente só para gente passar a ter.

Feliz Ano Velho (1982) conta o momento da vida do músico e escritor Marcelo Rubens Paiva em que ele, após tentar um mergulho em um lago, sofre uma lesão na coluna e fica impossibilitado de andar. Através da trajetória pessoal, passando do hospital, das sensações, das dores, da família e da amizade, o que se vê paralelamente é a história de um Brasil em plena abertura política do fim dá década de setenta e início dos anos oitenta. Com uma linguagem rápida, muito próxima da conversa e do estilo comum daquela geração, ele busca atravessar esses dois momentos – do eu e do mundo – a partir do olhar de um rapaz de 20 anos que de repente deixa de andar, se locomover e se torna durante um tempo, por conta disso, um espectador do mundo à sua volta.

O título do livro vem de um momento de profunda tristeza, quando ele da cama da UTI do hospital ouve pelas ruas os gritos, os fogos e as confraternizações de feliz ano novo. Apesar de receber carinho e atenção de todos para ele “nada tinha de sentido”, pois embora todos sofressem com ele, dessem apoio, era ele quem estava ali, preso a um corpo que parecia morto. No entanto, era na cabeça que estava o risco de morte: às vezes a gente prefere morrer a não ter.

Nessa batalha consigo, os livros ajudavam um bocado. Tudo virava motivo de associação com o seu caso, como no livro O que é isso companheiro? de Fernando Gabeira cujo personagem está posto tal como ele: “era uma situação muito parecida com a minha, preso num lugar que não conhecia, absolutamente sem fazer nada”. E arremata: “O Gabeira não sabe como foi importante pra mim.”

Sobre a situação política do Brasil, temos logo de cara a notícia da morte do pai anos atrás pela repressão da ditadura, assim como o aparecimento de um novo cara para a política: Luis Ignácio Lula da Silva, que segundo Marcelo era já naquela época “uma incógnita”, uma vez que não se portava como esquerdista tradicional, mas estava absolutamente longe da direita. Até hoje sua posição faz sentido. Ao lado disso, ele destaca uma geração que também era sem marcas, que conquistava um novo espaço que até então era inabitado pelo pensamento crítico:

Achei um barato essa conquista do espaço urbano. Na realidade, os muros não são de ninguém. A propriedade é uma forma de capitalizar a natureza que o imbecil do ser humano inventou. Os muros, então, pra que servem os muros? (…) pra acabar com o direito natural do ser humano.

Era o começo do traçado de uma geração que desbundava, “transava” drogas, repensava tanto a opressão quanto a liberdade sexual, dava voz aos desejos do corpo sem muita culpa, com uma pegada mais livre, menos acompanhada de perto pelo poder e pelos pais. Por isso, havia intensos amores curtos e amores eternamente reacendendo. Ele descreve a perda do amor de uma menina ao vê-la dormindo ao seu lado no hospital de forma tão carinhosa e pueril, adolescente que a impressão que se tem é que ele sofre agora por querer ter sofrido mais quando levou o famoso pé na bunda.

É assim que Marcelo Rubens Paiva organiza sua história: uma confluência de si, do mundo e daqueles que estavam ao seu redor. Faz isso de maneira breve, quase de quem ditou ao invés de escrever, mas também de forma muito apropriada para um mundo de hoje. Ainda mais que agora ele vê tudo de um lugar privilegiado de quem não é obrigado a correr, a sofrer, a viver, a malhar, a querer ter e a possuir. É só um rapaz que a natureza deu conta de desacelerar e que, por conta disso, está na posição de nos olhar de uma forma que não podemos ver: lúcido, simples, como o girar de sua cadeira de rodas.

Foto de capa: Universo dos Leitores

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