Na literatura, há livros e há obras primas. Sem qualquer intenção de fazer uma separação objetiva do que seriam os primeiros ou os segundos ou ditar uma lista fixa de ambos, visto que esta é uma divisão estritamente pessoal, tomo a liberdade de colocar “Uma Viagem à Índia”, de Gonçalo M. Tavares, no segundo grupo. O livro conta a história de Bloom que, saindo de Lisboa, deseja ir até a Índia em busca de uma viagem interior que lhe proporcione sabedoria (ou alegria ou mulheres). Com o passar da história, vamos descobrindo as razões desta escolha e vamos vivendo, juntamente com o herói, os desdobramentos de suas escolhas.
O romance, escrito de forma epopeica, é dividido em 10 Cantos, sendo cada um dividido em estrofes que, com um pouco de imaginação e liberdade do leitor, podem inclusive ser lidas separada e aleatoriamente (se isto foi algo que só eu fiz, não sei, porém o resultado foi espetacular). Sendo Gonçalo um escritor português e, seu romance, uma epopeia, é inevitável a comparação aos Lusíadas de Camões. Apesar de ser intencional a referência ao clássico português, Uma Viagem à Índia não é uma releitura de Camões: ele é uma das obras mais originais e extraordinárias já escritas e que, inclusive, recria a epopeia de forma nunca antes vista.
Confesso ser difícil a tarefa de resenha-lo; a qualquer momento corre-se o risco de contar passagens importantíssimas da história e estragar a leitura daqueles que irão se aventurar na viagem de Bloom. O personagem – que é, ao mesmo tempo, herói e anti herói – acredita que não é possível viajar à Índia indo diretamente à ela. É preciso passar por diversos outros lugares, pois para chegar à Índia é preciso estar preparado para alcança-la. A Índia não é meramente uma localização geográfica, é um estado de espírito: chegar a ela é chegar ao mais íntimo de nós mesmos. Revejo o que disse, inclusive, e afirmo que Bloom é demasiado humano para ser descrito em termos de herói ou anti herói; Bloom é todos nós: sou eu, é você, que lê esta resenha, é qualquer um. É apenas uma pessoa que, como todos, guarda rancores e alegrias de tudo que passou e busca construir um futuro possível de ser vivido com alguma tranquilidade.
Tudo que ouso dizer a respeito desta viagem é que Gonçalo é capaz de descrevê-la minuciosamente, intercalando falas dos personagens, reflexões e narrações do próprio escritor, fazendo desta obra uma das mais intensas e intrigantes que já li. Acompanhar a viagem de Bloom não é simplesmente ser espectador da mesma: é disponibilizar-se para uma viagem pessoal que nos leva a uma certeza dura, crua, porém imprescindível: podemos viajar à Índia, seja lá qual for a Índia de cada um. No final, a vida é o que é e, de uma maneira ou outra, precisamos encontrar caminhos para conviver com nossa própria história.