Pra memória da Dona Cida Goulart, trem bão de brabo.
Dona Cida podia ter morrido de boa. Mais cinco anos e deitava nos travesseirinhos do caixão que nem de quando tinha ido dormir pela última vez. Pá pum, descansando, indo pro Céu, enchendo linguiça de Jesus e sei lá mais que santo que ela amarrava nos pés da cama quando era mais nova. Eita mulherzinha assombrada, até pra morrer a bicha deu que ia de dar trabalho. Deve ter dado de vidente uns dias antes, visto que ia morrer dormindo e pensado assim com ela mesma: não deixo esses vagabundos ficarem de boa não, que de coçar o saco na vida já não me basta aquela sirigaita da Sônia. Então foi pra cozinha, a sala de anos de trabalho, o templo sagrado da matriarca da família Ferreira, escorregar na aguinha do piso do chão e espatifar quatro costelas e socar duas dentro dos pulmões.
Ô, mãezinha, cê bem que podia ser bichinha mansa, que nem a Mériquei, gatinha do vizinho, que lambia toda cuidadosa os filhotinhos na laje de casa, até que a senhora batia a vassoura lá pra eles irem embora, mas não! Tinha que ser vaca braba, bicho ruim, a bovina malvada que fica na estradinha de terra altas horas da noitona só pra ver carro parar e buzinar furioso. Saiu daqui de casa até o hospital gastando os fôlegos afogados pra reclamar que eu tava muito desesperado, que a Carlinha tava gorda demais pra correr, que a coitada da Clotilde tava fumando tanto que tossia mais que ela e que a Sônia, ô filha desgraçada, tava lá na casa de não sei que homem casado, com o celular e o juízo desligados.
Chegou no hospital, a fera amansou. Doutor bonitão, enfermeira gente fina, caminha toda limpa. Tomou remédio, tirou raio-x, dopou e dormiu o resto da tarde, a noite inteira, a manhã seguinte, acordou depois do meio dia pra comer, deu uma bambuzada na raba da Sônia por não ter ajudado o socorro, tomou mais remédio e dormiu de novo. Foi acordar melhor só no outro dia debaixo de um sol amarelinho e uma viola bem afinada.
Ô, desgraça! O leitor mais esperto já sabe que a véia morre, tá escrito lá nas primeiras linhas, mas se ficou de zóio bem aberto até agora entendeu que, do jeito da mãezinha, gente com viola no hospital era o cão dos infernos latindo na terra. Chegamos lá cedinho e encontramos a velha de olho aberto e cara fechada, falando mal da bendita da outra companheira de quarto, que desde cedo já acordava arrancando música do violãozinho. Tentamos acalmar a mãe, mas não dava! Ô bichinho ruim pra essa gente música. Lembrei na hora do escarcéu que fez quando meu filho André abriu o bico pela primeira no churras de domingo pra cantar Renato Russo. Queria que tivesse esse ânimo de cantoria pra pegar bom serviço, viu, gritou, e o André guardou o violão rapidinho. É que era o seguinte, a outra velha que dividia o quarto era bichinha talentosa, tocava violão, escrevia versinho, cantava poema, ouvia as histórias das enfermeiras, dava conselho paciente. Uma irritação só! Mamãe achava ela metida, que só queria aparecer, fazer que era a boazona, a Mona Lisa do pedaço. Disse que ia morrer se ouvisse cantoria mais uma vez que fosse. E não é que a bicha me era tão ruim que nem pra se obedecer servia? Saiu dali depois de mais três dias e veio de carro com a gente pra casa.
Chegou lá toda sem fôlego, tava que não tinha ar nem pra fazer os testes de soprar bolinha que o médico pedia. Sopra, Dona Cida. Não consigo. Tem que mexer a bolinha, vamos lá. Não consigo. Falta pouco, tá chegando lá. Não consigo. Se ir um pouquinho mais. Não consigo, saco, sai! Eu dirigindo, ela atrás com a Sônia e a Clotilde. Pediu pra Sônia dar banho nela assim que chegasse em casa. Mãe, tá frio, não tem como dar banho assim, olha pra senhora. E eu vou ficar cheirando hospital, mulher? ficar cheirando a velha violeira lá, tô fora. Vou tomar banho sim. Mãe, tá frio. E a mamãe ofegando, teimando que teimando que ia tomar o banho bendito. E quando a Sônia abriu a boca pra terminar o assunto, o Espírito Santo baixou na respiração da véia e ela soltou, bem de uma vez: que a Sônia tava de sacanagem, que se ela precisasse cagar na fralda, ela e a gente ia ter que limpar, que onde já se viu essa falta de consideração com a mãe, que quando a gente era pequeno ela ficou empilhando tijolo pra botar teto na nossa cabeça, que ela via as cagadas do filho e não falava nada demais, que se quisesse metido o pé no rabo da Sônia fazia era tempo. Parou quando a gente chegou em casa e acho que nós, os filhos, a gente tava mais de garganta seca que ela. Deitamos a velha na cama, pegamos as chaves e fomos na farmácia pegar remédio pra coitada.
Aí ela morreu. Entre esses parágrafos, só tem calculação, que talvez a véia cumpriu o objetivo da bronca final, que na verdade ela queria dar o último trabalhão, que era o jeito dela de pregar uma peça, que o hospital devia saber que ela não tinha jeito e tinha dado pra morrer em casa. Tanta coisa, tanta coisa, que a gente ficou tão confuso que era como se mãezinha tivesse viva. Aliás, no dia seguinte, indo pro enterro, entramos todos no carro e eu perguntei, burrão, quem vai levar a mãe? Aí a gente se deu conta.
E a véia morreu tão sacana, num humor tão ardido, que até agora é como se não tivesse caído a ficha que a mãezinha se foi. Parece até que tá ali, pronta pra dar bronca. E é como a Sônia falou quando a gente disse isso: eu sempre chorava quando ela terminava que carcar minhas costas.
Créditos da imagem: Will Leite, do WillTirando.