[Postado originalmente por Ovo de Fantasma]
Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil pergunta se ainda somos desterrados em nossa própria terra. A pergunta que tem mais cara de afirmação do que questão parece se colocar ao lado da frase do poema de Fernando Pessoa que diz: “Minha pátria é minha língua portuguesa.” Aí vem o Caetano, atento a tudo isso, e em Língua afirma: “A língua é minha pátria, e eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria.” Ora, se a língua é pátria e nosso país é mãe gentil, como diz nosso hino, o que somos de nós mesmos? Irmãos?
Por isso, para celebrar a nossa Língua Portuguesa, resolvemos fazer uma homenagem às nossas terras, nossa língua, nosso cinema e nossos poetas. O artista que inventa línguas dentro da própria língua é também aquele que desbrava terras e inventa mundos para que nós possamos habitar. Fiz, então, para o Ovo de Fantasma uma pequena seleção de filmes em que a língua portuguesa e suas respectivas terras estão no centro dessa discussão e agora reapresento para vocês aqui. Confira:
Terra em Transe (1967)
Quando um intelectual vem me dizer que não gostou de Terra em Transe porque não entendeu, dá vontade de perguntar a ele se poesia ou música ele entende tudo como entende uma reportagem, isto é, no sentido explicativo, óbvio, ululantérrimo!”
Glauber Rocha
Filme feito às vésperas do ano de 1968, o ano que não terminou, segundo Zuenir Ventura, que fotografa um Brasil que parece viver nesse transe, nessa instável hipnose que não leva a lugar nenhum, mas que vive de disputas de poder econômico, batalhas por terras e exploração de uns sobre os outros. É reflexo de uma consciência de que o cinema, essa potência capitalista e industrial, tem um papel essencial e radical de repensar as estruturas de poder do terceiro mundo que adormecem sobre um berço esplêndido de sofrimento.
A língua de Glauber, essa utopia violenta de uma consciência apocalíptica, é a língua de quem, como sonhava Leminski, precisa colocar a carroça na frente dos bois e expor ao país um país que pode vir a não sobreviver, ou até pior, pode para sempre apenas sobreviver.
Terra Estrangeira (1997)
Terra Estrangeira de Walter Salles, co-dirigido por Daniela Thomas, é um road-movie luso-tupiniquim. A língua portuguesa da mãe de Paco não é a mesma que a de Paco que precisa ir até a Europa lusófona para conhecer a si próprio, mas lá o que ele vê não é nada agradável: perseguição, tráfico e um submundo que lhe leva a uma outra viagem, agora tentando fugir daqueles que ele queria encontrar, ou seja, portugueses como sua mãe.
O estilo do filme, de cor estranhamente pálida e gestos sempre desencontrados, mostra como a cultura que se massifica e o pensamento tradicional não conseguem habitar o mesmo espaço. Assim, o que explode é que o mundo em desencaixe não consegue se identificar nem nas histórias de viagem, como era comum na tradição do cinema.A terra de Salles é um deserto onde não existe conforto no passado, nem casa no futuro.
Terra Sonâmbula (2007)
O Romance homônimo de Mia Couto é sobre um menino e um velho que se encontram em uma Moçambique devastada pela guerra civil que assola o país após sua independência. Essa criança, Muidinga, encontra em um corpo um diário que vai lendo aos poucos e descobrindo muitas coisas tanto de seu país, da sua história e de seu passado. Dirigido por Teresa Prata, o filme reconta a trajetória desses dois por essa terra que parece que nada poderá nunca vingar.
A terra sonâmbula de que fala Mia Couto e Teresa Prata é essa cuja paisagem adormece por sobre todos os olhos e que, por mais que se ande, parece não dar em lugar nenhum. Essa gente que acaba de acordar enquanto civilização com vontade própria, ao mesmo tempo ainda permanece sonâmbula, sem qualquer consciência de si ou do outro enquanto coletividade. Aqueles que andam pela terra não vem nada mais que um barco à deriva, um povo nômade e um sonho que deambula. A linguagem de Couto, passada para a tela com maestria, reinventa a voz daqueles que não falam, ou não veem, ou não sonham, porque ainda não aprenderam a viver: apenas dormem e caminham como sonâmbulos.