[Postado originalmente no Literatortura]
Paulo Leminski é um dos poetas mais complexos e completos da literatura nacional. Seu pensamento é como um mosaico de referências culturais, sociais e artísticas que se misturam dentro de si e de todo seu projeto poético e intelectual. Ele não faz dialética, mas escreve como um atlas, uma mapa de referências que, tentacularmente, se alastra para todos os cantos e todas as esferas da escrita. Leminski é produto de estudo, pensamento, mas também de vida. Por isso, também olhou para ela, tanto a sua como a de outros. Vida, de Paulo Leminski é o resultado disso tudo.
Vida é a reunião das quatro biografias escritas na década de 80 por Paulo Leminski, livro lançado pela Companhia das Letras em 2013. Nele o autor faz uma breve-longa análise de quatro nomes bastante díspares de nossa história – o poeta Cruz e Sousa, o japonês fazedor de haikais Bashô, e os revolucionários Jesus Cristo e Trótski. Em um longo exercício, resultado de intensa pesquisa, com 399 páginas, Leminski mapeia a vida e os principais feitos de cada um desses nomes, mostrando caleidoscopicamente que, de alguma forma, todos também são ele: o poeta marginal brasileiro, semi-concreto da década de 60. Afinal, o mundo é feito muitos.
Cruz e Souza
O poeta Cruz e Sousa (1861 – 1898), negro nascido em Florianópolis, para Leminski é um oximoro ou uma ironia pois a tendência de sua vida era ter dado errado. Simplesmente, pelos acasos que só nosso mundo pode propiciar, acabou podendo estudar e, dando certo, participou como branco da elite sulista, embora dela sofresse preconceito. O poeta curitibano afirma que Cruz e Sousa era uma anomalia em nossa poética que, de certa forma, antecipa o tropicalismo (utilizando, inclusive, o termo) com sua linguagem que é uma espécie de ereção, com suas musas lésbicas de um simbolismo que salta do olho para o ouvido – da cabeça e da visão para o corpo. Nascido numa cidade chamadoDesterro, vai terminar seu destino impossível em um lugar chamado Encantado, talvez pela ironia que é marca constante de sua vida.
Por essas e outras que Cruz e Sousa é, também, um Leminski:
Perfeição só existe na integração dissolução do sujeito no objeto.
Na tradução do eu no outro.
É por isso que você gostou tanto deste livro.
Você, agora, sabe.
Você, eu sou Cruz e Sousa
Bashô
Bashô (1644 – 1694), por outro lado, era um espírito mais controlado. Era um samurai-artista ou um artista samurai fazedor de haikais que se utilizava de um recurso chamado “hakekotoba”, que era um estilo da linguagem japonesa que faz uma palavra passar na outra. Bashô era cheio dessas ambivalências: artista e samurai, se utilizava de formas simples, mas com intuição barroca, e era ao mesmo tempo utilizador do silêncio, em uma forma zen, na mesma medida em que parecia ser um jazzista. Nessa santidade radical, de um discípulo do corpo e de Buda que Leminski afirma: Humanamente, só nos santos dá para ver os deuses: só nos radicais, dá pra ver a ideia.
E, por isso, arremata com um poema de Alice Ruiz:
Bashô enxergava
a lágrima
no olho do peixe.
Jesus Cristo
O Jesus do Leminski, por sua vez, (e para o poeta, o Jesus dele é tão verdadeiro quanto os outros), era um homem. Como tudo que se sabe dele veio de outros homens e outras línguas, o que se tem é apenas um Jesus traduzido, um pastiche do verdadeiro que, segundo o poeta, vivia em um extra-tempo. Assim, tudo o que fazia Jesus era manter um projeto altamente radical de contraposição a todo o panorama bíblico de até então e principalmente da sociedade vigente, completamente viciada pelo dinheiro e pela corrupção. Para isso, se utilizava de um recurso bastante controverso e enigmático – a parábola. Como ele próprio é criado em uma fábula inverossímil de milagres, suas parábolas, quase sempre epifânicas, expunham o mundo altamente violento com os homens e mulheres que só uma palavra que burlava o confronto poderia vencer. Entretanto, esse mesmo Jesus não era só um homem de paz, mas veio pela espada (palavras do próprio) e por isso destruir templos e poderosos fazia parte de seu projeto. Cristo é aquele que diz:
Não vim para salvar os justos
justos não precisam de salvação.
O Jesus de Leminski é o homem que inventa a alma, pois configura definitivamente uma interioridade, um “dentro” e apenas por isso poderia ser concomitantemente revolucionário e puro – ambas posições firmadas por um exagero sem fim. Jesus é, enfim, um projeto utópico, impossível que o homem não pode cumprir, mas que assombrará para sempre o ocidente com suas histórias.
Jesus, enfim, era esse revolucionário, tal como o próximo biografado.
Leon Trótski
A biografia de Trotski é marcada pela comparação direta da Rússia com o romance de Dostoiévski: Os Irmãos Karamazov. Para Paulo Leminski, o país soviético está encarnado na figura dos filhos de Karamazov: Aliócha, Ivan e Dmitri. O primeiro, um religioso, represente o tradicionalismo do czar com sua elite aristocrática e tradicional. Ivan é o pensamento “que vem de fora”, das ideias esclarecidas E Dmitri é aquele que precisa matar o pai, no caso, o estado tradicional. No entanto, os três são necessários para essa mudança, cada um cumprindo um importante papel.
Nesse sentido, Trótski vai ser um braço de inteligência, cultura e primor intelectual na revolução russa, ao lado do também inteligente Lênin e do prático Stalin. O que se vê nesses três é um excelente projeto, mas que, sem precedentes, fica a cargo das idiossincrasias de cada um que ideologicamente se tornam máquinas de matar. Trotski, na mediação desse pensamento, seria um dentro que é fora e um fora que é também dentro, um ser mais artístico, que recebia as influências e as mediava. Por isso é perseguido, porque tinha um projeto que não cabia nesse mundo e quando cabia era apenas para matar sanguinariamente seus próprios companheiros.
Fonte: http://literatortura.com/2013/11/vida-paulo-leminski/