A canção “Língua” de Caetano Veloso – um minucioso tratado da Língua Portuguesa

As discussões sobre nossa Língua Portuguesa sempre suscitaram muitas questões que, na maioria das vezes, não puderam ser respondidas com precisão ou sem levar em conta idiossincrasias pessoais e de um momento histórico. Acontece que toda discussão da língua é uma meta-discussão que inclui em si as impossibilidades da própria. De qualquer forma, sempre me interessou a relação que temos entre gramática, uso comum e diferenças com o português de Portugal. O linguista Marcos Bagno, no livro Português ou Brasileiro?, questiona se ainda falamos português ou já podemos dizer que somos falantes e viventes de uma língua “brasileira”. Questões teóricas à parte, o que se pode dizer é que a língua é sempre viva e deve ser celebrada por aquilo que ela manifesta: a cultura, a música, a arte, o pensamento, enfim, as subjetividades.

Para isso, resolvi analisar passo a passo a canção Língua de Caetano Veloso, a fim de esmiuçar diversas questões sobre nossa língua mãe nela expostas. Como metodologia, a matéria seguirá assim: cito a letra de Caetano e embaixo faço a breve análise referente ao trecho.

Antes de ler a matéria, seria interessante que se você conferisse a canção. Ouça aqui:

Língua
Caetano Veloso

Gosta de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões

A canção começa, não por acaso, com a palavra “gosto”, que pode remeter também ao gostar no sentido comum, de ter preferência por algo, como também do sentido do paladar – língua como parte do corpo e não como apenas linguagem, objeto da fala, o que é criado no horizonte de expectativa criado pro Caetano.

Gostar de roçar a língua de Luís de Camões é quase uma celebração sexual do encontro das duas pontas de nossa língua: a falada pelo poeta português escritor d’Os Lusíadas, principal formatador do que conhecemos como Língua Portuguesa, com aquilo que se tem de mais contemporâneo: a música popular e a língua do rap.

Gosto de ser e de estar

Gostar de ser e de estar é se ver diferente, e quem sabe melhor, do que a Língua Inglesa onde o verbo to be concentra os dois em apenas um. Enquanto ser remete a uma permanência, a uma possibilidade de essência, o estar é uma posição transitória, um estado, coisas que não podem ser expressas, pelo menos não com nossa precisão pela língua anglo-saxã.

E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões

Eis a função do poeta: confundir prosódias, ou seja, tipos de fala, sotaques, ritmos, acentos, misturando tudo em um amálgama poético. Profundir paródias, também uso do poeta, está ligado ao fato do Caetano, entre outras coisas, se utilizar do rap para contar sua história da língua.

A paródia é um termo grego que vem de para – ao lado (paralela) e odes(canto), então uma paródia é uma forma de cantar ao lado, que se refere ao original, mas transforma-o, muitas vezes ironiza-o. No caso de Língua, Caetano canta ao lado de um estilo fixo – o rap – o seu rap celebração, cuja função seria, segundo ele, encurtar as dores e furtar as cores (quem não se lembra daquelas réguas furta-cor que usávamos na infância?), como um camaleão.

Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa

Aqui temos a utilização dupla dos substantivos: Pessoa – Fernando Pessoa e Rosa – Guimarães Rosa, ambos sendo, ao mesmo tempo pessoas e rosas.

E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?

A relação entre amor e amizade foi muito explorada no decorrer da nossa história. Segundo Aristóteles, a amizade é superior ao amor porque dela se extrai uma relação moral, ou seja, existe nela uma incondicionalidade da bondade, diferente do pathos do amor que gera uma espécie de cegueira e engano no amador. É por isso que Caetano afirma, nesse ponto, que a poesia está para prosa assim como o amor está para a amizade: a prosa é controlada, moral, útil enquanto a poesia é o extravasamento do sentimento, mesmo que isso represente um fato “imoral”.

E deixe os Portugais morrerem à míngua
“Minha pátria é minha língua”
Fala Mangueira! Fala!

“Minha Pátria é minha língua” é uma frase do poema do O Livro do Desassossego de Bernardo Soares, heterônimo de Fernando Pessoa, no qual ele diz que seu apego não está ligado à nação, à pátria como um território, uma terra, que tudo isso lhe pode ser retirado, mas sua língua é sua grande referência de sentimento nacional, de pertencimento. Por isso, em língua,“minha pátria é minha língua” se resume apenas em “Fala Mangueira”, para dar voz à nossa voz.

Flor do Lácio Sambódromo

Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?

Última Flor do Lácio é como ficou conhecida nossa Língua Portuguesa. As línguas neolatinas são todas conhecidas como línguas do “lácio”, região europeia. O termo chega até nós pelo poema de Olavo Bilac, lembrando que o português é chamado de inculto justamente por que vem do latim vulgar:

“Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura”

Sambódromo é uma das palavras mais recentes do português, criação tipicamente brasileira que mistura samba – de origem africana – e o sufixo dromos – do grego, lugar onde se corre (autódromo, kartódromo).

Flor do Lácio Sambódromo é contar a história de nossa língua em uma linha.

Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!

A sintaxe dos paulistas é conhecida por grande parte de nossa população, por isso vou dar apenas um exemplo: aquela parte italianada, principalmente da Mooca que se utiliza de frases como: Mas vê se não ME pega uma gripe! Mas vê se não ME fica na chuva! Esse “me” sem função sintática, apenas de cunho enfático representa bem aquilo que Caetano tentou dizer.

O falso inglês relax dos surfistas é aquele do: “po brother…coé…mó vibe…”. Precisa dizer mais?

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Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda

E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E – xeque-mate – explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo

Quem não conhece, devia conhecer a dicção que Caetano destaca de Carmem Miranda. Ela possui uma forma única de cantar, apressada, silábica, rítmica, percussiva, apenas alguns dos motivos que fizeram os americanos se apaixonarem pelo seu canto.

A questão é que, de certa forma, ficamos “mirandados”, ou seja, mesmo que Carmem negue, ficamos “americanizados” e foi preciso um Chico Buarque nos trazer de volta para África – e o fez – com a canção Morena de Angola que nos religa, definitivamente, com Luanda, apesar da televisão afirmar e tentar nos criar para o contrário.

Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem

Thomas Hobbes afirmou que “o homem é o lobo do homem” para dizer que somos nossos próprios algozes e agentes de nossa própria destruição, e, de certa forma, servimos de alimento a nós mesmos. O movimento antropofágico brasileiro, a partir do manifesto de Oswald de Andrade, se utiliza do conceito que Caetano resignifica na canção: ser o lobo do lobo do lobo do lobo do homem…

Trata-se de um movimento espiral e infinito de se alimentar de todas as culturas, manifestações, estilos e proposições culturais, incorporá-las e transformá-las para nosso contexto. Se o homem é o lobo do homem é preciso, então, comer o lobo e comer o homem.

Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã

Adorar os nomes em ã tem a ver com o fato de que o til, o som nasal na vogal A fazendo um Ã-AN como diferença estrutural é uma das características principais do português. Adorar nossa língua é, por fim, adorar nosso til.

Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé
e Maria da Fé

Quem não conhece ninguém que tenha um nome baseado em um nome de outra pessoa? Scarlet Moon de Chevalier é Scarlet Moon, uma brasileira – de Chevalier – esposa de Lulu Santos falecida há pouco tempo. Glauco Mattoso é o poeta concreto que tem esse nome porque tinha um glaucoma que poderia matá-lo. Maria da Fé – é de nossas eternas Marias com nomes filhotes da mãe de Jesus! Eis a formação dos nomes brasileiros com seus Allain Dellons da Silva, gêmeas Grace e Kelly, entre outros.

Se você tem uma ideia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão

Como a filosofia tradicional é, em geral, toda alemã, cria-se uma ideia de que aqui não se faz filosofia. Creio que faz, mas uma filosofia ainda mais intensa como a dessa canção que agora analiso. Concordo com Caetano: se tiver uma ideia incrível – faça uma canção e deixe as filosofias para a Alemanha, afinal, algumas violências vieram justamente dessas filosofias.

Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo

Atualmente esses termos como Blitz ou Hollywood já foram incorporados em nossa língua, mas é possível em alguns dicionários antigos realmente ver que a cidade dos filmes americanos vem de uma palavra que era traduzida aqui como “Azevedo”. Não consegui achar o motivo, não há registros, mas só a menção numa canção já é um registro, ou não?

A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria

A pátria, pelo termo, vem daquele que é nosso pai. Assim, a língua, representante da pátria seria uma espécie de pai. Entretanto, conhecemos o português como “Língua mãe” e até nosso país é mãe até em nosso hino:“dos filhos desse solo, MÃE gentil, pátria amada, Brasil.”

No entanto, tanto a imagem do pai como da mãe, desde as questões freudianas até as foucaultianas são palco de traumas e poderes. Caetano, então, propõe que a língua seja frátria – irmã – e que esteja ao lado, não por cima, numa hierarquia.

Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana
(- Será que ele está no Pão de Açúcar?
– Tá craude brô
– Você e tu
– Lhe amo
– Qué queu te faço, nego?
– Bote ligeiro!
– Arigatô, arigatô!)

Caetano aqui aponta nossos usos e nossos futuros: por um lado uma poesia concreta e uma prosa caótica, ao lado de um samba-rap, ritmo da própria canção que ele fez, e de outros vários usos da nossa língua pelo nosso povo das maneiras mais diversas, misturando inglês, vozes verbais, mudando inclusive o uso dos pronomes.

Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem.

E para finalizar, nossos invejosos daqui das línguas de lá, querendo imitar os americanos e seu jeito medíocre e quase tribal de falar (uma língua de apenas justaposições, sem nada de arco-íris, apenas arcos de chuva [rainbow]). Enfim, inveja essa para quê?

Sendo assim, que fale nossa canção, que fale Jair Rodrigues: deixa que digam, que pensem, que falem. 
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