“Eu sou um Hamlet”: um espetáculo em que a verdadeira loucura está na opressão.

Lázaro Ramos conta que durante as filmagens de “Ó, Pai, ó” sentia falta de uma cena dramática. Certa noite, lendo “O Mercador de Veneza”, o ator teve uma iluminação com o trecho que versava sobre um judeu, mas se fosse adaptado para um negro, transplantava aquelas palavras para outra dor sem perder a potência do texto. “Eu sou um Hamlet”, solo de Rodrigo França em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo, usa esse mesmo artifício ao manter a dramaturgia de Shakespeare para enclausurar a angústia de um ator negro em cena. 

A provocação para esse espetáculo partiu do diretor Fernando Philbert, servindo tanto para movimentar a encenação, quanto para ferir a lógica da plateia. Em um palco repleto de refletores velhos, expondo um tipo de bastidor arruinado, Rodrigo França se apresenta de modo simples: “Boa noite! Hoje farei o meu melhor”. Propositalmente, o ator deixa-se ser percebido.

O que vem depois disso é uma sucessão de cenas em que a loucura de Hamlet parece invertida: quanta lucidez um homem negro à procura do assassino de seu pai – ou um artista brasileiro – precisam ter para aguentar o reino da Dinamarca? Sim, o estado de consciência sobre a podridão do racismo, da opressão e da injustiça, ao mesclar as duas figuras, ganha contornos delirantes já que a dúvida de Hamlet, nesse contexto, perde o sentido. Ao povo preto não foi dada a chance de ser ou não ser. Ao contrário, o poder de escolha foi – e ainda é – vilipendiado. 

Assim, a dor, a culpa, a desonra, o delírio e o poder são elementos que se complementam no mundo em que vivemos. E Rodrigo França entorna o caldeirão adicionando o próprio teatro como catalisador de angústia já que os sentimentos do ator – e a arte de representar – estão em choque com a suas questões sobre representatividade. Como esses dois pólos dividem o holofote? Pode um ator negro lidar com a loucura de um nobre sem adicionar seu desprezo pessoal aos reinos que escravizaram tantos iguais? Como as palavras da ficção podem ser incorporadas à outra realidade de maneira fidedigna? 

A cenografia de Natália Lana arma algumas formas de responder essas perguntas. Em um dos momentos mais impactantes de “Eu sou um Hamlet”, por exemplo, Rodrigo segura os refletores quebrados tal como Hamlet o fez com o crânio. Isso transforma a cena, abre para outros símbolos e atrai o público para dentro da loucura de que a opressão aos negros pode, sim, ser um delírio socialmente aceitável. Afinal, se uma vereadora negra é alvejada, se adolescentes são mortos ao voltarem para suas casas, se crianças tomam tiro enquanto brincam na rua e um homem é jogado da ponte pela própria polícia, como não ser louco? Que serventia há em estar consciente?

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A iluminação de Pedro Carneiro eleva o trabalho de Natália Lana, funcionando ora como um farol para iluminar os cantos escuros dos temas, ora como como um espelho para aprofundar o desconforto. O trabalho rigoroso da dramaturgia sonora e trilha original de Dani Nega se destaca por texturizar a sensações mais íntimas do personagem, como se nós estivéssemos dentro da cabeça dele. Mas o que realmente impressiona, além da interpretação do ator, é o modo como o texto integral de William Shakespeare, escrita entre 1599 e 1602, consente ao aqui e agora. Dita por França, as falas de Hamlet apontam para a podridão de um reino que se espalhou por toda parte.

Todos esses elementos convergem para uma reflexão racial bastante forte. O espelho está posto. Porém, mesmo posicionando o desafio do artista em enfrentar um texto clássico como a primeira etapa do espetáculo, “Eu sou um Hamlet” não parece ser metalinguístico porque a grande força ao colocar um homem negro fazendo Shakespeare é mostrar que o trabalho do ator, o contato com o público, a cultura, a ancestralidade, as dores, as angústias e a religião contam, sobretudo, histórias que não podem ser apagadas; através dos séculos, a representação também deve ser ato de representatividade e confronto.

Se “o resto é silêncio”, como diz o texto do bardo inglês, o final da peça suscita outra frase: “enquanto o leão não aprender a contar suas histórias, as vitórias da caça serão sempre do caçador”. Não por acaso, “Eu sou um Hamlet” é um rugido. 

FICHA TECNICA

Dramaturgia: William Shakespeare
Tradução: Aderbal Freire-Filho, Barbara Harrington e Wagner Moura
Adaptação: Fernando Philbert, Jonathan Raymundo e Rodrigo França
Direção: Fernando Philbert
Elenco: Rodrigo França
Assistente de Direção: Jonathan Raymundo
Dramaturgia Sonora e Trilha Original: Dani Nega
Cenografia: Natália Lana
Assistente de Cenografia: Alessandra Rodrigues
Cenotécnico: André Salles
Iluminação: Pedro Carneiro
Assistente de Iluminação: Thaysa Carvalho e Jéssica Barros
Operadora de Iluminação: Dara Duarte
Operador de Som: André Papi
Figurino: Rodrigo Barros
Assistente de Figurino: Layza Dias
Preparação de Elenco: Kennedy Lima
Coreografia: Valéria Monã
Pesquisa Yorubá: Gui Leal
Preparação Física: Bia Black
Camareira: Cacierly Tiengo
Assessoria de Imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques, Carol Zeferino e Daniele Valério
Relações Públicas:  Anderson Oliveira
Fotos: Márcio Farias
Fotos de Cena: Nil Caniné
Videomaker: Jonatas Marques
Direção de Producão: Gabrielle Araújo [Caboclas Produções]
Produção Executiva: Deborah Oliveira
Produtores Associados: Fernando Philbert e Rodrigo França
Produção: Diverso Cultura e Desenvolvimento, Caboclas Produções, Mar Aberto Produções Artísticas e Orí Conhecimentos

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