“A Poesia está na lástima”: A vida e poesia de Wilfred Owen, o trágico poeta da Grande Guerra

Conhecido por sua poesia vívida, crua, agressiva, forte, aterrorizante e emocionante sobre guerra, Wilfred Edward Salter Owen foi, inegavelmente, um dos maiores – para muitos, incluindo essa autora, o maior – poetas da Primeira Guerra Mundial. Nascido em 18 de março de 1893, ele tinha apenas 21 anos quando a Primeira Guerra Mundial foi deflagrada na Europa – o conflito que mudaria o mundo, e a vida de Owen, para sempre.

Wilfred Owen, 1917 – 24 anos

Infância e juventude

Filho mais velho de quatro, Wilfred Owen era muito próximo de sua família e sobretudo de sua mãe, Susan. Tanto ela quanto o pai de Owen, Thomas – que tinha sido um marinheiro no passado e voltara da Índia para se casar com Susan Shaw, tendo trabalhado a partir de então em uma estação ferroviária, trabalho do qual não gostava – tinham ascendência Galesa, tendo Wilfred nascido na cidade de Oswestry, na fronteira galesa de Shropshire. Os primeiros anos de sua vida foram passados ali, na espaçosa casa de seu avô materno. A família de sua mãe tinha sido razoavelmente rica quando ela era criança, mas tinha perdido boa parte de seu status econômico desde então.

Quando Owen tinha quatro anos, a família se mudou para uma casa simples em Birkenhead, e lá ele estudou até o ano de 1907, quando a família se mudou novamente, dessa vez para Shrewsbury. Owen se formou aos 18 anos, tendo completados seus estudos no Shrewsbuty Technical Institute no ano de 1911. Ele não conseguiu a bolsa de estudos que queria para estudar na London University, e começou a considerar uma vocação religiosa.

Owen começou a escrever poemas ainda na infância, tendo sido influenciado, então, pela Bíblia (foi criado anglicano devoto) e pelos poetas do Romantismo inglês. Esteve matriculado, entre 1911 e 1913, no University College, Reading (atualmente, Universidade de Reading) num curso de Botânica, e assistiu, também, aulas de Inglês Arcaico. Ao mesmo tempo, para testar sua aptidão para a vida na Igreja, concordou em se tornar um assistente voluntário para o Reverendo Herbert Wigan, um vigário da Igreja Anglicana em Oxfordshire. A ideia era que Owen ajudaria a cuidar dos enfermos e pobres por dois anos, e depois disso decidiria se queria seguir por esse caminho.

Owen, a Igreja e a França

Nesse período, desiludiu-se em grande medida com a Igreja. Durante seu trabalho com os menos favorecidos, Owen desenvolveu uma compreensão melhor dos sofrimentos dos miseráveis e dos problemas sociais e econômicos enfrentados na Inglaterra da virada do século, e desse entendimento nasceu seu humanitarismo que, entretanto, fez com que se desapontasse com a reação da Igreja Anglicana, que ele julgava insuficiente.

Ao mesmo tempo, Wilfred usava seu tempo livre para ler de tudo – ele adorava Keats e Shelley – e começar a se aventurar na poesia, escrevendo poemas sobre os assuntos convencionais do período, mas que já tinham algumas características que mesmo então começavam a despontar e que seriam parte fundamental da grandeza de sua poesia posterior – sobretudo sua habilidade para modulação de rítmo e musicalidade e atino sonoro.

Owen voltou para casa em 1913, gravemente doente, tendo adquirido uma infecção respiratória consideravelmente piorada pelas condições de vida no vicariato, onde dormia em um quarto frio e úmido. Ele passou oito meses de convalescença com sua família.

Nessa época, ele já pensava em seguir uma carreira nas artes, mas seu pai desaprovava por motivos financeiros. Assim, no fim daquele ano, Owen se mudou para a França, A partir de 1913, se mudou para a França, onde deu aulas de inglês e francês na Escola de Línguas Berlitz em Bordeaux, cidade onde conheceu o poeta simbolista e escritor pacifista já idoso Laurent Tailhade, que o encorajou em sua ambição de se tornar poeta. Seu segundo ano na França foi passado vivendo na casa de uma família católica francesa, onde Owen dava aulas particulares para os dois meninos da família. Ele se tornou um verdadeiro francófilo a partir de então.

Sua experiência na França pré-guerra e seu amor pelo país certamente tiveram grande influência em sua poesia futura, pois Owen tinha melhor noção do nível de destruição que a guerra tinha trazido não apenas física mas também socialmente para o país, e grande empatia pelo sofrimento experimentado pelos civis franceses, sobretudo quando os exércitos aliados perseguiram os alemães em retirada por vilarejos franceses na segunda metade de 1918.

Verão de 1914: Guerra na Europa

O rapaz não teve pressa em alistar-se quando, em 1914, a guerra começou. Ele chegou a considerar se alistar no exército Francês. Eventualmente, porém, retornou à Inglaterra e, em 1915, se alistou no 28o Batalhão do Regimento de Londres, popularmente conhecido como “Artists Rifles”, um regimento voluntário organizado no século XIX composto por artistas de várias especialidades diferentes, e passou sete meses em treinamento em Hare Hall Camp em Essex. Em 1916, foi comissionado como segundo-tenente no Regimento Manchester. Tinha, então, 23 anos, e foi enviado para a França, dessa vez como combatente.

Wilfred Owen sorrindo em sua primeira fotografia em uniforme como um “Tommy” no Regimento Artist’s Rifles, 1916.

Qualquer noção ligeiramente romântica que pudesse ter tido da guerra – em suas primeiras cartas para sua mãe, é possível encontrar algumas passagens no seguinte espírito: “Há um sentimento bom e heróico vindo de estar na França” – se evaporou imediatamente. Em janeiro de 1917, três meses após sua chegada, Wilfred Owen conheceu o inferno da guerra.

Infernos de lama: Os horrores e tragédias da Frente Ocidental

No dia 6, ele escreveu sobre uma marcha, descrevendo o estado precário das estradas e a maneira como o enorme peso carregado pelos homens era insuportável para a maioria deles. Pelos dois dias seguintes, ele caminharia por quatro quilômetros de trincheiras encharcadas com uma profundidade média de mais de meio metro de água e lama. Entre os dias 9 e 12 de janeiro, Owen foi abrigado em uma cabana localizada a 60 metros de um obuseiro que disparava uma vez por minuto, ininterruptamente, dia e noite.

Terreno destruído, Primeira Guerra Mundial

O dia 12 de janeiro foi particularmente marcante para Owen: nele, ocorreu a marcha e o ataque de gás venenoso que Owen imortalizou em sua obra prima, Dulce et Decorum Est. A ocasião foi um verdadeiro horror: Caminhando nada menos que cinco quilômetros em uma estrada bombardeada, e depois mais cinco através de uma trincheira alagada, onde boa parte dos homens ficaram presos na lama pesada e foram forçados a abandonar seu equipamento, parte de suas roupas e seus sapatos, continuando a marcha descalços, com os pés sangrando e congelando, esses homens foram bombardeados continuamente por explosivos pesados ao longo de toda a marcha, que ocorreu também sob o fogo contínuo de metralhadoras. Eles estavam praticamente inconscientes de exaustão quando foram atacados com gás venenoso, ataque esse que parece ter sido muito marcante para o jovem soldado, que descreveria ataques de gás de maneira terrivelmente gráfica em boa parte de sua poesia.

Em Dulce et Decorum Est, Owen escreve:

“Curvados ao chão, como velhos mendigos sob sacos,

Coxos, tossindo como velhas bruxas, maldizemos através da lama,

Até darmos as costas aos assombrosos clarões,

E em direção ao nosso distante descanso começarmos a nos arrastar;

Homens marchavam dormindo. Muitos tinham perdido suas botas,

Mas seguiam mancando, calçados em sangue.

Todos ficaram aleijados; todos cegos;

Bêbados de cansaço; surdos até para os assobios

Das bombas de gás caindo suavemente.”

Mas os traumas e tragédias da vida de Owen na guerra estavam apenas começando. Ainda em janeiro, um dos homens da companhia de Owen foi atirado de uma escada após uma explosão, e ficou cego – esse evento inspirou o poema “The Sentry”. Na noite de 13 de março, ele caiu em uma cratera de quase cinco metros de profundidade feita por uma granada enquanto procurava no escuro por um soldado que tinha sucumbido à exaustão. Seis dias depois, no dia 19 de Março, ele foi hospitalizado por uma concussão sofrida na queda. Passou alguns dias no hospital, e neles escreveu “To a Friend (With an identity disc)”.

Na primeira semana do mês de abril, o batalhão de Owen passou por privações físicas e tortura psicológica imensas em função do frio e da neve anormais acompanhadas de bombardeios pesados por parte do inimigo. Owen e seus homens passaram quatro dias presos em um campo aberto coberto de neve, sem dormir, em roupas encharcadas e congeladas, sem que as forças de apoio chegassem para ajudá-los. Disso, Owen escreveu: “Fui mantido vivo pelo brandy, pelo medo de morrer, e pela gloriosa perspectiva da cidadezinha com catedral logo abaixo de nós, brilhando de manhã”. O bombardeio pesado continuou, e apenas três semanas depois, Owen, descrevendo os dias entre o 12 e o 24 de Abril: “por doze dias não lavei meu rosto, não tirei minhas botas, nem dormi um sono profundo. Por doze dias vivemos dentro de buracos sabendo que a qualquer momento uma bomba poderia nos matar”.

Pouco depois, em uma noite úmida, Owen foi pego numa explosão de um morteiro de trincheiras enquanto dormia, o que o deixou inconsciente por um longo tempo. Ele passou dias sem se mover, escondido em uma cratera muito pequena para o tamanho dele, com o cadáver de um amigo apodrecendo a menos de um metro e meio de distância. Em Maio, ele foi hospitalizado com enxaqueca severa, que a princípio ele atribuiu à sua concussão cerebral. Não era disso que se tratava, porém.

Wilfred Owen em Craighlockhart e o ano milagroso

Não surpreendentemente após todos os traumas sofridos, Owen foi diagnosticado com shell shock (Transtorno de Estresse Pós-Traumático), uma experiência que viria a definir sua poesia em mais de uma maneira – afinal, não apenas os sintomas de shell shock seriam tema frequente em seus trabalhos como foi durante o tratamento no hospital de guerra Craiglockhart que Wilfred Owen conheceu outro artista que seria seu mentor e sua maior influência: o também célebre poeta de guerra Siegfried Sassoon.

Editoral escrito pro Wilfred Owen para o Hydra, jornal do hospital Craiglockhart

A estadia de Owen em Craiglockhart foi frutífera para sua poesia: lá, conheceu uma série de artistas e membros da comunidade literária e até mesmo deu aulas em um escola numa parte pobre da cidade. Ele foi incentivado por seu psiquiatra, o sensível e gentil Dr. Brock, a editar o jornal do hospital, o Hydra. Owen atuou como editor da publicação por 12 edições, tendo sido liberado no final do ano. Além disso, o médico – que também se tornou um bom amigo – o ajudou a refletir sobre uma série de situações em sua vida, incluindo o lado problemático de seus relacionamentos familiares – Owen se ressentia do pai por sua falta de apoio à sua carreira, e era intensamente ligado à mãe, e ao mesmo tempo procurava se tornar independente -, sua relação complicada com a fé, o cristianismo, e as práticas da Igreja Anglicana; sua (provável) homossexualidade – Owen sabidamente não apenas não se interessava como não gostava muito da companhia de mulheres (exceto sua mãe) como categoria, e se sentia atraído por homens. Há muita especulação sobre potenciais relacionamentos homossexuais que teve durante sua vida, incluindo com o abertamente gay Sassoon, e seu amigo Robert Graves o descreveu como um “idealista homossexual” – e mesmo sua introspecção timidez.

Corpo médico do hospital Craiglockhart

O maior mérito do tratamento de Owen no sentido literário, porém, foi ajudá-lo a processar seu trauma e suas terríveis experiências com violência extrema, de forma que ele conseguiu eventualmente colocá-las no papel de maneira extremamente contundente em sua poesia. O hospital era muito acolhedor e conhecido por “adotar” seus pacientes, e Owen desenvolveu-se imensamente bem durante sua estadia lá, fazendo amigos, dando aulas e palestras e escrevendo. Ele passou por um período de criatividade e energia para escrever quase sobre-humana que durou vários meses e resultou em dezenas de poemas imensamente pessoais.

Hydra, jornal do hospital Craiglockhart editado por Wilfred Owen

Wilfred Owen e Siegfried Sassoon

A chegada de Sassoon no hospital foi um divisor de águas para Owen. Muito tímido, ele levou mais de duas semanas para reunir a coragem de se apresentar ao poeta, que então já era bastante conhecido por sua coleção de poemas The Old Huntsman, por suas condecorações, e mais recentemente por ter se envolvido em um escândalo de enormes proporções ao efetivamente desertar e enviar uma carta para o Departamento de Guerra, que chegou a imprensa, foi lida em voz alta na Casa dos Comuns, e se tornou célebre, defendendo o fim da guerra. Não ajudava em nada o fato de que um dos sintomas do shell shock de Owen, muito comum entre pacientes sofrendo de trauma, era a gagueira.

Placa em Craiglockhart indicando que Wilfred Owen e Siegfried Sassoon se conheceram nesse prédio

A amizade de Owen e Sassoon é lendária e já foi objeto de livros e filmes. Já um poeta de guerra estabelecido, Sassoon influenciou inegavelmente a escrita de Owen – alguns manuscritos originais dos poemas dele incluem anotações e sugestões na caligrafia do amigo – e é possível perceber um paralelismo de temas entre os dois: tanto Sassoon quanto Owen são conhecidos por seus poemas tratando do pior e mais feio lado da guerra – amputações, gás, cadáveres presos no arame farpado, membros mutilados, shell shock, suicídio, lama -, indo na contramão do estilo patriótico e romântico adotado por muitos de seus contemporâneos, sobretudo nos primeiros anos do conflito. Tanto Sassoon quanto Owen eram apaixonados defensores do fim da guerra e tinham imensa compaixão e identificação com os soldados feridos e traumatizados que conheceram no hospital, e esses temas perpassaram o trabalho de ambos.

Além disso, através de Sassoon Owen também fez amizade com um largo círculo de poetas e escritores, incluindo o editor literário londrino Robert Ross, e uma série de outros célebres escritores e poetas, como Robert Graves, Edmund Blunden, Thomas Hardy, Arnold Bennett, Osber e Edith Sitwell e o Capitão Charles Scott Moncrieff. Isso certamente foi muito importante para o tímido e, simultaneamente, razoavelmente pretensioso Wilfred Owen. Os outros oficiais e homens em seu batalhão não tinham a menor ideia de que Owen escrevia poesia – ou qualquer outra coisa – e fazer parte de um grupo de poetas e escritores lhe deu um senso de comunidade e o fez se sentir como “um dos iniciados”. Ao mesmo tempo, porém, essa companhia lhe causou inegável ansiedade. Aos 24 anos, ele já se achava “velho” para ser poeta tendo atingido tão pouca coisa até então, e havia uma senso real de urgência para compensar pelo que considerava tempo perdido em seu desenvolvimento artístico. Ele não desejava fama, porém. Em 1918, escreveu para a mãe: “Celebridade é a última enfermidade que almejo”.

Muito modesto e com uma grande tendência à idealização de seus heróis – ele escreveu para a mãe contando que ainda não tinha tido a coragem de dizer ao novo amigo que “eu não sou digno de ascender seu cachimbo. Eu simplesmente me sento lá e digo para ele onde acho que ele está errado” -, e sendo Sassoon exatamente o tipo de homem que inegavelmente tinha imenso poder sobre seu por vezes esnobe imaginário – proveniente de uma família famosa e rica, já um poeta e ativista do pacifismo conhecido, amigo de um imenso círculo de intelectuais e escritores conhecidos, ex-aluno da prestigiosa Cambridge, sem contar a diferença de idade (Sassoon era sete anos mais velho que Owen) -, Owen o creditava como uma influência radical, dramática e, para todos os efeitos, divisora de águas em seu trabalho, acreditando que ele lhe tinha formado poeta e efetivamente construído seu estilo, e chegou a escrever diversas vezes em agradecimento por ter lhe reformado como poeta. Enquanto o encorajamento de Sassoon foi definitivamente fundamental para que Owen de fato escrevesse seriamente e passasse a se reconhecer como poeta, que seu estilo tenha sido forjado por Sassoon não é verdade, porém, e o próprio Sassoon reconheceu não apenas a relativa marginalidade de sua influência como também a inegável superioridade técnica de Owen ao longo de toda a sua vida (algo que o próprio Owen jamais sonhou em considerar): “[minha técnica] era das mais elementares quando comparada com a experimentação inovadora [de Owen]”.

Siegfried Sasoon

O estilo de Sassoon – também, importante frisar, um grande poeta em seu próprio direito – em sua poesia de guerra é acidamente satírico, seco, e sua técnica consiste de rimas precisas e regulares, linguagem coloquial, estilo direto, concisão epigramática, rigidez, personagens arquetípicos e rítimo pronunciado. Owen chegou a tentar imitá-lo após se conhecerem em Craiglockhart, e escreveu poemas no mesmo estilo seco e fortemente satírico de Sassoon, mas logo voltou a distanciar-se desse tipo de poesia em favor daquilo que se tornaria sua marca: a amplitude emocional e imensa humanidade de sua poesia, além, é claro, de sua versatilidade técnica e sonoridade muito complexa e tecnicamente inovadora. A maior influência de Sassoon no trabalho de Owen foi indubitavelmente no âmbito temático. De acordo com Sassoon, o que ele ofereceu a Owen foi não mais que um toque de encaminhamento no momento em que ele mais precisava de tal, e que sua única influência digna de ser vista como tal na poesia de Owen foi “que eu o estimulei na direção de uma escrita de realismo compassivo e desafiador. […] Meu encorajamento foi oportuno, e eu posso dizer que lhe dei muito incentivo durante seu rápido avanço na direção da auto-revelação”.

A poesia de Owen já antes de Craiglockhart tinha um controle sonoro, diversidade metodológica e experimentalismo técnico cheio de padrões complexos que misturavam diversos tipos de sons, rimas, aliterações, consonâncias, assonâncias e dissonâncias que foram muito além de qualquer inovação de versificação que Sassoon tentou ou atingiu em sua longa carreira, mesmo após a sua fase como poeta de guerra. Sua capacidade para metáforas era brilhantemente imaginativa, e ele tinha um talento imenso para dramatizar suas experiências psicológicas em verso. Os poemas de Owen eram mais emocionalmente honestos e francos, seus personagens mais humanos, sua poesia de guerra, enfim, mais ampla que a de seu mentor.

Sassoon tem mais um mérito em relação a carreira de Owen além de sua influência temática e de seu apoio constante, porém: Foi ele largamente o responsável por tornar Owen conhecido e popular depois da guerra, e por construir seu legado.

Um poeta de guerra: Owen retorna para as trincheiras

No final de 1917, Wilfred Owen recebeu alta parra serviços militares leves, servindo sobretudo em funções administrativas, longe da frente. Owen decidiu retornar para as trincheiras na França e se juntar a seus homens em Julho de 1918, apesar de ter permissão para continuar servindo fora da ativa por tempo indeterminado. Isso certamente foi difícil para ele, que tinha inúmeros amigos que o incentivavam e até mesmo exortavam a ficar na Inglaterra para contribuir com o movimento pacifista que protestava pelo fim da guerra. Sassoon chegou a ameaçar esfaquear a perna de Owen se ele decidisse retornar, e sua opinião fortíssima a respeito do que o jovem poeta deveria fazer com certeza foi fundamental para que Owen não lhe comunicasse da sua decisão até já estar de volta na França.

Wilfred Owen

Sua decisão pode ser creditada a muitos fatores, um dos principais sendo Sassoon. O amigo também tinha escolhido retornar para a frente de batalha após sair do hospital – e, tendo em vista a admiração de Owen por ele, é muito provável que ele tenha se inspirado – e, mais ainda, pela a saída de Sassoon do serviço militar alguns meses depois de seu retorno para tratar um ferimento. Owen parecia crer que alguém deveria continuar escrevendo sobre a realidade do combate, e que se Sassoon já não mais estaria em batalha, ele deveria cumprir esse papel. Nas prórprias palavras de Owen, agora um poeta estabelecido como tal em sua própria mente, ele agora seria capaz de melhor cumprir seu papel e passar sua mensagem para o mundo.

A caminho da França, ele estava confiante de sua decisão. Chegando nas trincheiras, porém, ele declarou em uma carta para Sassoon se sentir um tolo, e disse ser sua única consolação a ideia de que estava adquirindo mais experiência para transmutar em poesia. Sua indignação com a guerra, com o comando geral e com o descaso das autoridades com as baixas – que incluiam civis e mesmo crianças – na segunda metade do ano de 1918, período em que os aliados perseguiram os alemães em retirada por vilarejos franceses nas fronteiras, cresceu imensamente nos últimos meses de sua vida, e embora nunca tenham chegado a sua poesia – Owen não conseguiu escrever quase nada no breve período que passou novamente na frente -, sua raiva era evidente em sua correspondência pessoal.

Em seus últimos meses de vida – isto é, ao longo das semanas que passou de volta no front no final de 1918 -, Owen admitidamente adotou o embotamento emocional, ou desenvolvimento de um nível de insensibilidade – tema e título de um de seus mais famosos poemas – como um mecanismo de enfrentamento contra o grande nível de estresse ao qual estava sendo submetido e o pesar do imenso número de baixas sofridas por seu batalhão. Essa era uma situação muito comum – as vezes, mas nem sempre, sintoma da TEPT – e que foi frequentemente relatada por soldados: a perda de sensibilidade pelo horror e pela morte, e o anestesiamento emocional completo. Em sua correspondência para Sassoon e para sua mãe, Owen deixa seu caso bem claro. Escrevvendo para Sassoon em uma carta em que ele comentava sobre o poema do outro, Counter-Attack, ele disse que ler os poemas do amigo o deixavam mais aterrorizado do que a realidade de ter nos braços um soldado com uma bala atravessada na cabeça e ter de sentir seu sangue empapado e quente em suas roupas por longo tempo. Em outra, ele explicou exatamente sua situação: “Eu não posso dizer que estou sofrendo de nada, tendo deixado meu cérebro ficar anestesiado. {…} Sentirei raiva outra vez assim que me permitir, mas agora, não posso. Eu não tiro o cigarro da boca quando escrevo “Morto” nas cartas deles. Mas um dia eu escreverei “Morto” em muitos livros.” Duas semanas antes de morrer, ele escreveu tanto para a mãe quanto para o amigo dizendo que seus nervos estavam em perfeita ordem.

Novembro de 1918: Morre um poeta, calam as armas

Após seu retorno, em outubro daquele ano, Owen foi indicado para receber a Cruz Militar por bravura em um ataque na Linha Fonsomme. A medalha por “galanteria conspícua” foi merecida, de acordo com a descrição dada pelo Lugar-tenente J. Foulkes, que estava com Owen naquela noite, para Edmund Blunden, em função das ações de Owen quando todos os oficiais, excetuado-se Foulkes e o próprio Owen, foram mortos durante um ataque de sucesso – mas que inflingiu baixas enormes – à uma trincheira bem protegida por arame farpado que era considerada uma segunda Linha Hindenburg.

Nessa ocasião, Owen assumiu o comando, liderando os homens no meio da noite para uma posição de relativa segurança onde eles conseguiram segurar a linha por horas, tomando como cobertura a única coisa possível – uma casamata alemã capturada, que protegia malmente os homens, mas também servia como uma armadilha, já que indicava para o inimigo onde o fogo deveria ser concentrado. Os poucos que sobreviveram o fizeram graças à Owen, e receberam reforços pela manhã. Foulkes declarou ter se sentido “totalmente confiante” em seguir a liderança de Owen na ocasião, tão frio, controlado e determinado ele estava.

Ele sempre desejara a condecoração, acreditando que ela lhe daria mais credibilidade em seu ativismo e seus esforços pelo armistício, sendo agora tido como um herói de guerra em casa, mas não chegou a recebê-la: sua Cruz Militar foi oficializada em Fevereiro de 1919, três meses após sua morte. Owen foi morto em batalha durante o cruzamento do Canal Sambre-Oise, entre seus homens, atingido por uma metralhadora alemã exatamente uma semana, quase hora à hora, antes da assinatura do Armistício. Tinha 25 anos.

Wilfred Owen em uniforme de oficial completo, 1918 – 25 anos

Sua mãe recebeu a notícia no dia do Armistício, enquanto os sinos da igreja da cidade tocavam em comemoração ao fim da guerra. Ela foi causa de grande irritação para os amigos poetas de Owen que o tinham conhecido durante a guerra, pois fez o possível para criar ao redor de seu filho a mitologia de um homem que ele não era, e como certamente não teria gostado de ser representado. Em seu túmulo, mandou gravar duas frases do poema “The End”, escrito pelo próprio Wilfred Owen. O poema fala sobre a dúvida de Owen sobre a imortalidade espiritual, e ultimamente conclui que ela não existe; Susan Owen, porém, escolheu duas frases do meio do poema, em que o interlocutor ainda está explicitando suas dúvidas – “Irá a vida renovar esses corpos? É uma verdade, toda a morte Ele irá anular, todas as lágrimas amenizar?” -, mas propositalmente omitiu a interrogação no final, tornando a conclusão atingida literalmente o oposto do que pretendia seu filho. Em 1931, o poeta de guerra e amigo de Owen Edmund Blunden, que estava editando o livro “Os Poemas de Wilfred Owen”, escreveu para Sassoon imensamente chateado com a interferência da mãe de Owen, dizendo: “A Sra. Owen conseguiu o que queria, com uma capa roxa e uma fotografia que faz W parecer um Major de um metro e oitenta que passou anos servindo no Leste da África ou coisa que o valha” (Owen era um homem baixo, com 1,65 de altura, e teria sido considerado pequeno demais para entrar no exército até 1915).

A tragédia de Owen, fora o grande tragédia do inútil desperdício humano, é o apagar da vida de um poeta que, com apenas um ano de amadurecimento como tal, já se tornou o maior de sua tradição, e já era tão gigante em seu brilhantismo. É doloroso pensar no que Wilfred Owen poderia ter atingido se tivesse vivido tanto quanto Sassoon ou Graves – que morreram nas décadas de 60 e 80, respectivamente -, quase tanto quanto é doloroso pensar que ele poderia ter vivido tão mais, ponto. Acima de tudo, porém, é trágico pensar que, com todo o seu ódio, a sua desesperança e a sua frustração, por uma semana ele não viu o calar das armas. Owen morreu no limiar da concretização, por mais falha que tenha sido, de tudo aquilo pelo qual ele lutou, sem jamais vê-la ocorrer. No fim das contas, ele se tornou a tragédia sobre a qual escrevia: mais um rapaz com uma vida jogada fora por um guerra sem sentido, para atingir resultado nenhum.

Monumento “Futility” – a estátua representa Wilfred Owen chorando, e tem o poema “Futility” – Futilidade – gravado

“Um homossexual idealista”: a sexualidade de Wilfred Owen

De maneira semelhante, a família e sobretudo o irmão de Wilfred Owen, Harold, fez o possível para apagar qualquer vestígio de homessexualidade da memória de Owen, exigindo e eventualmente conseguindo que algumas passagens que se referiam ao poeta como homossexual fossem excluídas do livro “Goodbye to All That”, de seu amigo e também escritor e poeta Robert Graves – “um homossexual idealista”, escreveu Graves, também homossexual -, e falou ele próprio da vida sexual de seu irmão em um dos volumes de sua autobiografia, dizendo que Wilfred tinha escolhido uma vida celibatária (bastante provável) por amor a poesia (menos provável). Em seu crédito, porém, ele também apresentou outros aspectos muito verdadeiros da personalidade de Owen como elementos que poderiam ter sido parte da razão pela qual tantos compreendiam Owen como gay: sua ingenuidade, sua comunicação extremamente emotiva e muitas vezes impulsiva, e sua tendência a adotar homens que admirava como ídolos e heróis.

Robert Graves

A poesia de guerra com muita frequência incorre, quer acidentalmente ou de propósito, em temas e aspectos estéticos tradicionalmente homoeróticos. O conceito e as descrições de “meninos” e “rapazes” que Owen apresenta em sua poesia tem elementos homoeróticos clássicos. Ao mesmo tempo, porém, é importante lembrar que esses mesmos elementos – descrições físicas enfatizando força, juventude e beleza, olhos brilhantes, dentes brancos, mãos e braços fortes, cabelos ondulados, etc, etc – são uma característica quase que obrigatória na literatura e poesia de guerra de maneira geral – em parte em função da quantidade de homens gays envolvidos em sua produção, é claro, mas também por atuarem como um instrumento literário extremamente útil e esteticamente apropriado para as circunstâncias e objetivos que o gênero busca atingir.

De qualquer maneira, a vida romântica e sexual de Owen parece não ter sido muito ativa, e ele dificilmente tratava do tema em suas poesias. O eroticismo no trabalho de Owen de maneira geral é platônico, idealizado, romântico (no sentido literário da palavra) e quase imaginário, e serve muito mais como um instrumento literário visando o contraste simples e direto com os horrores da guerra e da vida nas trincheiras – como ocorre, por exemplo, em “Disabled”, no qual o protagonista do poema, um jovem soldado com as pernas amputadas, se lembra dos verões que passou “com os braços ao redor de cinturas” de garotas, agora uma impossibilidade, já que nenhuma se interessa por ele em sua presente e deprimente situação – do que como uma característica que existe por si própria. Apenas um poema de Owen, dentre todos, pode ser chamado inequivocamente de um poema de amor: “With an Identity Disc”, também conhecido como “To a Friend” (Para um amigo / amiga). O poema evita qualquer indicativo de gênero da pessoa à quem é dedicado, e pode facilmente ser dirigido à um homem ou mulher.

É sabido, porém, que Owen não tinha grande boa vontade com mulheres de maneira geral. Ele admitidamente se sentia “irritado” por praticamente qualquer mulher que não fosse sua mãe, e seu tratamento do sexo feminino em sua poesia é, no melhor dos casos, frio, e no pior, acusatório. Já que praticamente toda a sua poesia é composta de poemas de guerra, mulheres figuram nela apenas marginalmente; entretanto, nos poemas em que elas de fato aparecem – “The Dead-Beat”, “S.I.W”, “Disabled”, “The Send-Off” -, com frequência são retratadas com dureza, normalmente como esposas, namoradas e mães de soldados mortos, amputados ou mutilados que já não tem mais interesse neles ou que são fúteis em suas preocupações. Nos quatro poemas mencionados, Owen menciona uma esposa que rapidamente se casa com um homem mais rico após a morte do marido, uma mãe cuja preocupação pela vida do filho não a impede de se ver feliz quando ele volta para casa ferido para que ela cuide dele – e que se consola dizendo a si mesma que ele “morreu sorrindo” -, garotas que não mais se interessam por soldados quando eles sofrem uma amputação, e mesmo uma que tinha sido a inspiração para um rapaz se juntar a guerra visando agradar a namorada, além de escarnecer das mulheres que colocavam flores nos uniformes dos namorados e maridos antes de os enviarem ao front.

É claro que boa parte desses comentários tem exatamente o mesmo tom das reclamações que Owen faz da população civil de maneira geral, homens ou mulheres. Owen admitidamente tinha imensa raiva da população que glorificava a guerra e mantinha noções românticas de heroísmo, dever e sacrifício sem saber o que de fato acontecia nas trincheiras, e isso se estendia tanto a mulheres quanto a homens. É perfeitamente possível admitir que, uma vez que, ao contrário dos homens – que encontravam um contraponto no trabalho de Owen por serem hora civis, hora soldados -, as mulheres representadas necessariamente devessem ser civis, a falta de representações femininas positivas na poesia de Owen se deva ao fato de que ele não representava a população civil em geral de maneira positiva, ponto. Ainda assim, é interessante notar que, enquanto a maior parte dos soldados-poetas escrevessem a respeito de mães, esposas e namoradas com pena, carinho ou saudade, e enfatizando a lástima de vê-las chorar ou sofrer, indicando-as como vítimas da guerra em sua própria maneira, Owen em nenhum momento as vê dessa maneira, as colocando quase sempre como parte integrante daquilo que compõe as muitas dores enfrentadas pelos soldados na guerra.

Wilfred Owen se torna conhecido

A celebridade de Owen, mínima em vida – apenas cinco de seus poemas foram publicados antes de sua morte, três no Nation e dois em um jornal editado por ele próprio durante seu período como paciente em Craighlockhart, o Hydra -, cresceu imensamente após sua morte, com Siegfried Sassoon tendo sido instrumental em divulgar seu trabalho e torná-lo conhecido para um grande público – público esse que hoje largamente o considera o melhor dos poetas da Grande Guerra, tendo superado, inclusive, seu mentor.

Logo após sua morte, sete novos poemas seus foram publicados num volume dedicado a sua memória da antologia anual de Edith Sitwell, Wheels. Entre 1919 e 1920, mais sete poemas seus foram publicados em periódicos. O resto de sua obra foi publicado mais tarde: Sassoon e Sitwell editaram conjuntamente uma coleção, intitulada Poemas, em 1920, contendo 23 de seus trabalhos. Em 1931, o também poeta Edmund Blunden editou o livro “The Poems of Wilfred Owen”, com os 23 publicados por Sassoon e Sitwell acompanhados por outros 19. “The Collected Poems de Wilfred Owen”, editado em 1963 por C. Day Lewis, contém oitenta no total.

“Meu tema é a Guerra e a lástima da guerra…”

Wilfred Owen deixou cerca de 80 poemas, todos escritos ao longo de um ano – entre agosto de 1917 e setembro de 1918 -, majoritariamente publicados após sua morte. É inegável que sejam alguns dos melhores poemas britânicos do período. Dentre seus trabalhos mais famosos, podemos citar “Strange Meeting” (“Encontro Estranho”), “Insensibility” (“Insensibilidade”), “Mental Cases” (“Casos Mentais”), “Spring Offensive” (“Ofensiva de Primavera”), “Anthem for Doomed Youth” (“Hino Pela Juventude Condenada”), “Apologia Pro Poemate Meo” (“In Defense of My Poetry”, ou, “Em Defesa Da Minha Poesia”), “Futility” (“Futilidade”) e “Dulce Et Decorum Est” (“It’s Sweet and Proper”, ou “É Doce e Apropriado”), sendo este último, talvez, o mais conhecido de todos os seus poemas.

Owen escrevia quase que exclusivamente sobre os horrores da guerra, a vida nas trincheiras, combates e ataques de gás, além de tecer comentários ferinos sobre a saúde física e mental dos soldados. As principais características de seu trabalho são seu realismo incontrito, suas imagens viscerais e descrições vívidas, e uma pungente revolta com o que esses homens eram obrigados a suportar. Seus poemas, textos hora melancólicos, hora marcadamente agressivos, têm, apesar ou mesmo, talvez, em virtude de seus óbvios traços de raiva, ironia e escárnio, uma rara beleza em sua composição, atestando a qualidade da escrita do autor que, ao conjurar visões dantescas, ainda consegue exprimir um estranho senso de fascinação.

A poesia de Owen expõe de maneira crua e brutal a realidade do que de fato seria encontrado em uma trincheira da Grande Guerra: rapazes muito jovens, com frequência acometidos por doenças, ferimentos e transtornos mentais, que não queriam estar ali, e possivelmente dali nunca sairiam, dessensibilizados para a morte, o sangue e o assassinato, e irremediavelmente traumatizados por eles. Ele não constrói grandes heróis combatendo pela liberdade e pela pátria; revela, em seu lugar, meninos assustados lutando para sobreviver.

Seus poemas se colocam no meio do sangue e da lama, de pedaços de carne dilacerada e ossos esmagados, de tempestades de projéteis e ataques de gás, de assassinatos de inimigos e enterros de colegas, emaranhados no arame farpado ou imobilizados em hospitais de campanha. Ele não poupa seu leitor; de fato, parece desdenhar e mesmo enraivecer-se com ele, fazendo um esforço deliberado para pintar as mais aterradoras e violentas ilustrações que consegue – de maneira magistral – conjurar, numa tentativa de destruir de uma vez por todas qualquer ilusão sobre a frente de batalha que seu público possa acalentar. A poesia de Owen é gráfica e carregada de emoção honesta e ocasionalmente desenfreada, e por isso tão pungente.

Uma característica importante da poesia de Owen é sua ligação umbilical com o belicismo e a tecnologia militar modernos. As imagens que Owen constrói são visceralmente conectadas com os avanços tecnológicos e o estilo de combate da virada do século – fundamentais para a situação aterradora da Primeira Guerra Mundial na medida em que os exércitos e seus comandantes, preparados para um combate nos moldes do século XIX, foram confrontados com tanques de guerra, metralhadoras, artilharia pesada de longa distância, aviões, bombas e armas químicas que tornavam “a arte da guerra” tradicional nada menos do que suicídio coletivo. A demora desses exércitos a entenderem e se adaptarem ao novo jeito de fazer guerra foi catastrófico e custou a vida de milhares de homens. Simultaneamente, resquícios do combate do século anterior – como a utilização de baionetas e outras armas corpo-a-corpo – fizeram da Grande Guerra um evento particularmente traumático, que combinava simultaneamente um nível de poder destrutivo em massa jamais visto até então com o lado mais violento e terrível do combate “de cavalheiros”. Owen explora essas dimensões com maestria em seu trabalho.

A poesia de Owen tem um caráter particularmente estranho e macabro que a torna única. Em boa parte de seus poemas, ele utiliza diversos tipos de inconsciência – o enlouquecimento, o sonho, a alucinação, o desmaio, a exaustão completa – e a falta de entendimento de si mesmo dentro do tempo e do espaço como uma ferramenta sensorial visando representar o absurdo e surreal que ele enxergava nas experiências de guerra de maneira geral. Há uma desconexão sensorial perceptível entre a realidade material do eu-lírico e a sua identidade ou situação mental em boa parte de sua obra, e esse efeito não apenas é bastante realista para com a realidade como percebida pelos soldados, mas também tem o surpreendente efeito de tornar a guerra e a sensação que Owen deseja passar mais acessível para seu público, transformando o horror da guerra em uma experiência universal que toca mesmo aqueles de seus leitores que, em 2020, jamais estiveram nem perto de algo parecido. A tragédia, o desespero e o medo saem do papel e consumem o leitor de tal forma a se tornarem insuportáveis. O efeito produzido por essa desconexão mental e sensorial é o de um lento enlouquecimento – representando a opinião de Owen de que não apenas os soldados representados por ele através de seu eu-lírico, mas também o mundo inteiro e da humanidade que aceitam o cataclismo que foi a Grande Guerra como uma realidade por um minuto sequer aceitável de maneira geral, perderam completamente suas cabeças. Não há racionalidade capaz de explicar um mundo que permite tal tragédia. Através de sua poesia com frequência absurda e desconexa, Owen representa o que foi ecoado vez atrás de vez por veterano atrás de veterano: que as palavras para descrever tal horror simplesmente não existem. Que não há maneira lógica, coesa ou racional de representar o inenarrável. Exatamente por isso, a poesia de Wilfred Owen é efetiva. Exatamente por isso, a lástima por ela descrita é imensa.

“…a Poesia está na lástima.”

Seu desdém pela atitude geral da sociedade civil a respeito da guerra – óbvio em suas cartas, nas quais Owen escrevia ter raiva não dos alemães, mas do povo inglês, “que poderia nos liberar e não o faz” – pode ser percebido, por exemplo, em Apologia Pro Poemate Meo, cujos versos finais declaram que ninguém que não tenha experimentado o inferno vale um sorriso sequer daqueles que lá estiveram, e que o autor não escreverá nada que contribua para que qualquer um pense o contrário. O poema inteiro revolve, de fato, ao redor das ilusões mantidas por civis a respeito dos supostos nobres sentimentos e belos sacrifícios dos combatentes – camaradagem, senso de dever, abandono do medo, encontros com Deus, alegria em servir a pátria, momentos espirituais e visões de rara e comovente beleza – e as despedaça de uma por uma, armado com cadáveres mutilados, feridas abertas, homens enlameados, bandagens ensanguentadas, arame farpado e soldados beirando a morte.

Seu escárnio e desprezo pelas multidões que incentivam e felicitam jovens soldados e veteranos recém-chegados da frente é declarado abertamente – para o leitor contemporâneo, pode também ser lido como uma crítica àqueles que consomem e distribuem propaganda de guerra como entretenimento, desconsiderando ou adulterando a realidade brutal por trás dessas imagens. O poema é comumente visto como uma resposta à uma carta do célebre poeta e escritor Robert Graves, que exortava: “Pelo amor de Deus, se anime e escreva com mais otimismo – a guerra ainda não terminou, mas um poeta deveria ter um espírito que está acima disso”. Também faz, possivelmente, referência ao texto religioso “Apologia Pro Vita Sua” (“In Defence of One’s Life” ou “Em Defesa da Sua Vida”), escrito na década de 1860 por John Henry Newman.

A perda da fé e a desconexão com o mundo também fica evidente em boa parte do trabalho de Owen. Em seus poemas, e sobretudo nos que utilizam sonhos, visões, alucinações e surrealismo, o mundo espiritual – Deus, o universo, o que quer que seja – é representado como, na melhor das hipóteses, inteiramente indiferente, e na pior, propositalmente maligno. O Deus do amor cristão, a ideia de um ser divino de benevolência que cuida de seus filhos é inegavelmente inexistente no universo como percebido por Owen. O mundo é impossível de ser explicado através de qualquer lente de racionalidade. A vida real se confunde com o estado de inconsciência – em “Conscious”, um soldado ferido, hospitalizado e semi-inconsciente não consegue compreender o que são as flores amarelas em sua mesa de cabeceira, nem se lembrar de como é o céu azul. Soldados marcham até a exaustão, desmaiam, tem pesadelos, acordam, congelam até o adormecimento, são feridos, perdem consciência pela rápida perda de sangue, tem alucinações, veem seus colegas mortos, entram em estado de choque em função do cansaço extremo, da culpa extrema, do medo extremo. Em meio a tudo isso, continuam marchando por dias seguidos, sem dormir. O horror da vida real perturba até mesmo o enlouquecimento.

Um aspecto particular da vida de Owen colore sua obra de maneira bastante vívida e frequente: sua experiência pessoal com shell-shock. O termo, cunhado durante a Primeira Guerra pelo psicólogo britânico Charles Samuel Myers, se refere a uma classe de neurastenia associada à um tipo de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) anterior à utilização deste último termo. O transtorno em questão era tragicamente comum entre soldados, desencadeado como uma reação extrema aos choques do combate ou dos bombardeios. Seus principais sintomas incluíam ataques de pânico, ausência total de racionalidade, incapacidade de dormir, andar ou falar, diversos “tiques” ou comportamentos maníacos, instintos de fuga exacerbados e, mais famosamente, uma aparência muito particular, caracterizada sobretudo por olhos vidrados e desfocados (popularmente conhecidos como “o olhar de mil jardas”) e, às vezes, sorrisos alienados. Ambas as últimas características foram fotografadas à exaustão – intencionalmente, como na conhecidíssima fotografia do soldado aguardando tratamento na Batalha do Somme, ou talvez sem querer, como na igualmente conhecida fotografia do centro de tratamento dos soldados australianos em Ypres, 1917 –, imagens essas exibidas pelo mundo inteiro, que até hoje assombram o imaginário de quem as vê.

Embora menções ao transtorno estejam espalhadas por vários de seus trabalhos, em nenhum deles o tema é mais óbvio e melhor explorado que em “Mental Cases”, um poema que versa especificamente sobre o assunto, descrevendo de forma detalhada não somente alguns dos mais visíveis efeitos da aflição como também algo do que se passa na mente dos homens que sofrem dela; Mais curto, mas extremamente eficiente em seu propósito, utiliza-se de imagens infernais, alucinações e muito grafismo – “Para seus sentidos, a luz do sol é como uma mancha de sangue, a noite chega negra como sangue, o amanhecer aparece como uma ferida aberta e fresca” – para construir um texto marcante e macabro que explora a situação desses soldados – um de seus trabalhos mais explícitos, diretamente inspirado não apenas por sua própria experiência, mas também pelo que viu em Craiglockhart.

Um dos sintomas de TEPT é a dormência emocional. A sensação de embotamento emocional relatada pelo próprio Owen em suas últimas semanas de vida é retratada com perfeição em outro de seus poemas – escritos antes do fato ter ocorrido com ele –, “Insensibility”, que é brilhante por descrever um fenômeno – a dessensibilização para a morte, para a tragédia e para o desperdício humano – que ocorria tanto com os soldados quanto com a população civil, e que Owen compreendia e perdoava nos primeiros, mas desprezava e condenava nos últimos. Ele fala também da falta de emotividade que um soldado pode sentir quanto à própria morte – “Felizes são os homens que antes de serem mortos / Conseguem deixar as veias correrem frias. […] Vivendo, ele não é muito vivo / Morrendo, não é muito mortal”. A própria noção não só de indiferença, mas ocasionalmente de preferir a morte à continuidade da vida nas trincheiras, está presente em outros trabalhos de Owen – notavelmente, em Asleep, onde o eu-lírico revela ter inveja daqueles que conseguem dormir – mesmo sendo o sono em questão o sono da morte. Não é necessariamente uma vontade de morrer, mas sim de abandonar o terror psicológico e sobretudo as condições de vida horrendas das trincheiras. Na concepção de Owen, o morto “Dorme tremendo menos, com menos frio, do que nós que devemos acordar, e acordados dizer ‘ai de mim!'”

Esse mesmo nível de adormecimento emocional aparece também, em conjunto com a perda de fé de Owen, em outros poemas, como “Futility” e “Exposure”, que são excelentes representações do cinismo que acometeu Owen ao longo de seu período na guerra. “Futility” é um verdadeiro mergulho no horrorizante sentido do mundo em guerra, mas também na futilidade tanto daquele tipo de morte quanto daquele tipo de vida. Como em boa parte de seus poemas, o universo, tanto em termos físicos quanto espirituais, parece totalmente alheio, confuso e sem propósito, fora de órbita. O Deus ou o mundo espiritual de Owen nesse poema não é inexistente ou maligno, mas profundamente indiferente. A primavera vai chegar e tomar conta daquele campo de batalha, apesar de todo o horror e a morte vivenciados por aquela terra congelada. O eu-lírico questiona qual é a sua função, já que não há sol no mundo que possa fazer a vida florescer novamente num mundo como aquele. A vida, que mesmo a força vital do universo não consegue impulsionar, é para ele inexistente.

“Exposure” carrega muitas semelhanças com “Futility”, e como “Asleep” traz também um certo nível de desejo pela morte – ou, mais propriamente, a crença de que a morte seria menos pior do que a vida nas trincheiras. O poema trata sobre uma experiência assustadora de exposição extrema aos elementos – algo que o próprio Owen experienciou -, narrando os pensamentos de um grupo de soldados que, envoltos em neve e vento congelante, se veem dominados pela hostilidade da natureza – mais uma representação da forma como o universo, na concepção de Owen, é indiferente ou maligno para com os seres humanos – e a imprevisibilidade de sua situação. A natureza também representa a guerra. O eu-lírico prevê que naquela noite, quando um grupo for enviado para procurar corpos caídos na terra de ninguém, ele e seus companheiros serão encontrados como cadáveres congelados até as pálpebras. Eles começam a congelar até a morte de fato, mas a sensação rapidamente se converte de dor para dormência e, finalmente, um calor bem vindo. Os moribundos sonham com o verão e com o calor, num estado de quase alucinação, que logo se torna claramente a imagem de seus cadáveres se tornando parte da paisagem – “nós ficamos dormindo, cochilando sob o sol, cobertos de flores nascendo onde o pássaro negro cutuca” – e imaginam seus “fantasmas se arrastando de volta para casa” antes deles próprios voltarem para o momento real e “se voltarem outra vez para os seus moribundos”.

Wilfred Owen e parte do manuscrito de seu poema mais conhecido, Dulce et Decorum Est

Seu poema mais famoso, entretanto, é, indubitavelmente, Dulce et Decorum Est, um representativo exemplar de várias das principais características da escrita de Owen – sua agressividade e revolta, suas imagens violentas, seu realismo cru. O título faz referência ao moto comumente recitado por apoiadores da guerra no início do século XX (mesmo antes do estopim da Grande Guerra), uma frase de Horácio que significa “É doce e apropriado morrer pela pátria”. Nos versos finais de seu poema, Owen se refere a isso como “A Velha Mentira”, termo imortalizado nos anos subsequentes, e hoje inseparável da frase original. O trabalho foi inspirado pela marcha enfrentada por Owen em janeiro de 1917

A principal cena do poema – uma das favoritas do autor, presente em várias de suas poesias – é a agonizante morte de um soldado sufocado por ácido clorídrico, descrita em detalhes excruciantes. O poema conclui que se todos pudessem ver em primeira mão os verdadeiros horrores da Guerra – especificamente, a morte por gás – não mais recitariam “a velha mentira”. Ao contrapor a frase com a visão de um rapaz sufocando em gás, cuspindo, engasgando, vomitando e espumando, e depois tendo seu cadáver jogado displicentemente sobre uma carroça, com o eu-lírico sendo forçado a marchar atrás dela, olhando para o corpo, Owen ilustra com maestria que não há nada de digno, glorioso ou doce na morte na frente de batalha – e a noção romântica que propaga esse tipo de ideia é descrita por ele como “obscena como câncer, amarga como a bile de vis, incuráveis feridas em línguas inocentes”. O texto não constitui apenas uma crítica ferrenha à Guerra – como todo o trabalho de Owen – mas também, especialmente, uma condenação àqueles que glorificam o combate, são veículos de propaganda bélica e incentivam rapazes jovens e impressionáveis a se alistarem, enviando-os, de maneira inconsequente, para sua possível – e terrível – morte.

Duas fotografias de Wilfred Owen e parte de seu manuscrito para Dulce Et Decorum Est, repleto de correções

Dulce et Decorum Est é um dos muitos poemas em que Owen se utiliza do sonho (ou, mais apropriadamente, do pesadelo) ou da alucinação como um instrumento literário. O poema é, efetivamente, uma história de horror, com o eu-lírico exausto revivendo a morte de seu companheiro de marcha em seus sonhos repetidas vezes. A simbologia do sonho, repetida inúmeras vezes no trabalho de Owen, é importante pois carrega múltiplos significados: de maneira mais explícita, o pesadelo e a dificuldade para dormir é um sintoma extremamente comum de TEPT, e boa parte dos soldados relatavam ser perturbados por sonhos terríveis durante e após a guerra; num nível mais profundo, porém, Owen utiliza o sonho para demonstrar sua impressão, dividida com muitos outros soldados, da experiência na guerra como algo surrealista. Acima de tudo, porém, Owen utiliza o sonho e a alucinação repetidas vezes em seus poemas para fazer um ponto muito específico: para ele, a experiência de guerra criou a noção da vida como um pesadelo ou alucinação em que todos estão presos, um universo surreal e paralelo onde a violência extrema da guerra é considerada aceitável, natural e até mesmo normal. Retratar eventos muito reais como pesadelos ou alucinações é uma maneira de colocar em evidência o absurdismo e a profunda irracionalidade do que estava ocorrendo no mundo real naquele momento.

Dentre os poemas “de sonho”, nenhum é mais absurdo ou surrealista do que “The Show”, onde o eu-lírico, observando uma paisagem destruída pela guerra, começa a sonhar ou alucinar, e a paisagem rapidamente se transforma em uma parte aumentada do rosto de um soldado morto enfestado por milhares de centopéias, com os buracos de bombas se tornando cicatrizes de catapora e o arame farpado a barba malfeita. No final do poema, o autor percebe a si próprio como a cabeça cortada de uma centopéia, com as centenas de pés do corpo, ainda se movendo cegamente, se transformando nos homens sob seu comando, dos quais ele foi separado. É um poema vívido, enlouquecedor e nojento. A voracidade assustadora e terrível das centopéias representam a ganância e o nojo de uma sociedade que devora seus jovens, e a paisagem de guerra transformada em um corpo humano apodrecendo é símbolo do abandono ao qual esses homens foram relegados, e o cinismo, a tragédia e a desesperança com as quais Owen encara a humanidade.

O poema carrega muita semelhança com o sentimento demonstrado em uma passagem de Journey’s End, de R. C. Sherriff – também veterano da Primeira Guerra, quem em 1927 escreveu essa peça, que se tornou um dos maiores clássicos da ficção sobre Primeira Guerra Mundial, baseando-se nas próprias experiências e nas de seus colegas nas trincheiras – em que o protagonista, o capitão Stanhope, fala das alucinações que lhe ocorrem corriqueiramente no dia a dia. Essa não é a única imagem que Journey’s End tem em comum com a poesia de Owen – a ideia da vida sendo representada pelo “tremular de uma vela”, apresentada em Mental Cases, também está presente na novelização da peça, escrita por Sherriff com o também veterano Vernon Bartlett. É dificil saber se em 1927 Sherriff já tinha tido contato com a poesia de Owen – afinal, sua fama começou a crescer consideravelmente na década de 1930 -, mas quer ele tenha influenciado o autor, quer os dois tenham escrito independentemente sobre o mesmo assunto, isso serve para comprovar o brilhantismo de Owen em suas representações extremamente reais de experiências comuns, embora totalmente surrealistas e absurdas, de milhares de soldados como ele.

R. C. Sherriff

Leia também: “…ele é chamado de bêbado”: o alcoolismo representado em Journey’s End de R. C. Sherriff

A influência temática e, ocasionalmente, técnica de Sassoon pode ser percebida em boa parte da poesia de Owen, mas é “Strange Meeting” – que carrega similaridades temáticas com “The Rear Guard” e “The Redeemer”, do próprio Sassoon – que o poeta considerava a obra prima de seu jovem amigo. O poema é inspirado pelos escritos de Dante em “Inferno”, usando de elementos da tradição literária dantesca para construir o efeito meditativo e surreal desejado. Nele, um soldado acredita ter escapado de uma batalha através de um túnel. Essa descida física é um elemento literário simbólico presente ao redor do mundo, ao longo da história e nos gêneros literários mais diversos para representar a introspecção e a morte simbólica ou real, e nesse caso específico faz um paralelo à descida de Dante aos círculos do inferno – também presente em “The Rear Guard”. Nesse túnel, ele encontra outro homem, também soldado, e “ao ver seu sorriso”, o poeta compreende que morreu e está no Inferno.

Em um contexto parte alucinatório, parte sonho, o eu-lírico percebe estar cercado de milhares de homens dormindo e gemendo, todos mortos nessa e em outras “guerras titânicas”. Ele reflete sobre a própria morte enquanto reconhece similaridades entre ele e o soldado com quem está falando, até que lentamente percebe que o homem em questão é um soldado inimigo, morto pelo próprio eu-lírico.

Essa humanidade conjunta, que une soldados feitos inimigos, forçados a se matar, é o que constitui a tragédia do poema e, mais amplamente, da guerra. A falta de identificação tanto do eu-lírico quanto do homem morto – isto é, sua nacionalidade – também é uma maneira de representar a universalidade da tragédia da guerra, por representar o Homem como um todo. O poema é uma discussão do conflito moral que muitos soldados sentiram, colocando em evidência a forma como os dois soldados não tinham motivo algum para nutrir inimizade.

Há ainda uma camada de tragédia particular em “Strange Meeting” que Owen certamente não desejaria ter o crédito dessa maneira. Uma parte fundamental do poema é a tristeza do soldado – que, representando o próprio Owen, era poeta – em ter tido suas ambições poéticas interrompidas pela morte. O poema termina de maneira abrupta quando o homem em questão para de falar para “dormir”, interrompendo-se no meio de um raciocínio. A intenção de Owen é explicitar o que acontece quando morre um artista – nesse caso, um poeta: a interrupção de sua arte, o silenciamento de suas ideias, a promessa para sempre descumprida de mais um verso, mais uma linha que nunca será escrita. Que isso viesse a se tornar uma realidade meses depois com a morte do próprio Owen é, por si só, um horror a parte.

O poema é de uma excelência técnica acima da média até mesmo para os padrões de Owen, e foi imensamente elogiado por muitos nomes importantes da escrita e análise literárias. O próprio Sassoon descreveu o poema como a melhor de todas as elegias escritas por um soldado da Grande Guerra, enquanto T. S. Elliot o declarou “uma das mais emocionantes peças de poesia inspiradas pela guerra”, um resultado atingido pelo “feito técnico de grande originalidade” do poeta. A característica de sonho, alucinação ou inconsciência é atingida pela manutenção por parte de Owen de um padrão musical complexo, que foi apontado por John Middleton Murry como sendo extremamente sutil – tão sutil que a vastíssima maioria dos leitores pensaria estar o poema em versos simples – em seu emprego de assonâncias e dissonâncias e de rimas imperfeitas, criando um efeito de profunda melancolia, tristeza e inquietude inexplicável e crescente, unificando o poema e construindo uma sensação inexorável de tragédia e desgosto pelo desperdício humano fútil, injustificável e inútil da guerra que permanece com o leitor muito após o fim do poema.

Outro exemplo da impecabilidade técnica de Owen está em um de seus mais célebres poemas, “Anthem for Doomed Youth”. O poema é um soneto, e sua forma rígida é responsável por maior força na interligação de símbolos e imagens, e pela concisão do trabalho, usando a quebra entre o octeto e o sexteto para aprofundar o contraste temático – no octeto, as palavras e a construção estética sugerem caos e cacofonia, e a abordagem temática expressa sua profunda raiva e frustração usando imagens e palavras fortes que quase zombam da juventude desgraçada “morrendo como gado”, enquanto no sexteto ele apresenta o luto pessoal, silencioso, doloroso que é o considerado aceitável como reação à imensa tragédia da morte de jovens rapazes, os símbolos e a construção imagética sugerindo silêncio e paz. Essa pausa é suavizada pela repetição muito bem feita de padrões sonoros de assonância e aliteração do início ao fim do poema, com sons ecoando de maneira a oferecer estrutura além da forma. A organização deliberada de temas contrastantes com grupos simbólicos particulares inseridos dentro de uma imagem maior que se mantém ao longo do poema termina o trabalho de unificação estética da obra, que com toda a sua complexidade, atinge, atestando o brilhantismo de seu autor, o efeito magnífico de simplicidade, sobretudo em função da linguagem utilizada e da forma direta e sem grandes floreios com que Owen escreve. “Anthem for Doomed Youth” foi o poema que convenceu Sassoon de que Wilfred Owen não era apenas um “promissor poeta menor”, mas um grande escritor com “uma serenidade clássica e imaginativa” e “impressionantes afinidades com Keats”. Sua estrutura é praticamente perfeita.

O legado de Owen enquanto poeta

Owen foi parte da movimentação em direção à poesia Modernista que nasceria depois da Grande Guerra, e teve grande influência na poesia britânica das décadas seguintes. Já na década de 20, Owen foi estabelecido, em grande parte graças à Sassoon, como um poeta de guerra conhecido. Foi nos anos 30 que ele começou a atrair grande atenção crítica porém, sobretudo após a publicação de “The Poems de Wilfred Owen” de Edmund Blunden em 1931.

A poesia de Owen foi de grande influência no desenvolvimento da poesia modernista de modo geral. O grupo de poetas liderado por W. H. Auden – incluindo C. Day Lewis, Christopher Isherwood, Louis MacNeice e Stephen Spender –, foi influenciado primariamente por três poetas: T. S. Eliot, Gerard Manley Hopkins e Wilfred Owen. O interesse deles em Owen incluía, é claro, seus temas – a profundidade da experiência humana, o protesto político, a revolta contra injustiça e o franco ódio à guerra – mas era sobretudo relacionado à sua técnica e ao lado artístico de sua obra.

C. Day Lewis em particular escreveu, em 1963, de maneira imensamente elogiosa sobre Wilfred Owen, exaltando seus poemas pela “originalidade e força de sua linguagem, a natureza apaixonada da indignação e da pena que eles expressam, a mistura de realismo duro com sensualidade não atrofiada pelos horrores de onde florescem”, e declarando terem sido “certamente os melhores escritos por qualquer poeta inglês da Primeira Guerra” e “provavelmente os melhores poemas sobre guerra em nossa literatura”. Essas últimas opiniões de Lewis não apenas são incontestáveis, como é possível criticá-las como ainda muito tímidas, e a opinião crítica geral está de acordo.

Dylan Thomas escreveu, muito acertadamente, que Owen era “um poeta para todos os tempos, todos os lugares, e todas as guerras”. A poesia de Owen continua e sempre continuará central para qualquer discussão a respeito de poesia de guerra. Imensos nomes da crítica e análise literária tem escrito, comentado e analisado a poesia de Owen há quase cem anos – Bonamy Dobree, Hoxie Fairchild, Ifor Evans, J. Middleton, Kenneth Muir, T. S. Elliot, para citar alguns. Sua poesia não é apenas o melhor da poesia de guerra: a grandeza de seu trabalho pode ser medida por qualquer parâmetro.

“O verdadeiro poeta deve ser verdadeiro”

Wilfred Owen, meses antes de sua morte

Antes de morrer, Wilfred Owen planejava publicar um livro. Sua ideia era reunir seus poemas em uma obra que daria ao leitor uma perspectiva profunda, ampla e, acima de tudo, verdadeira do que era a Grande Guerra. Ele chegou a organizar sua poesia em um sumário dividido de maneira muito solta em temas, e escreveu uma descrição pequena de cada um ao lado do título. Em Maio de 1918, William Heinemann (dono da famosa editora Heinemann) tinha pedido a Robert Ross, crítico de arte e jornalista famoso por seu relacionamento com Oscar Wilde, que lesse o manuscrito de Owen quando este o submetesse – algo impressionante, considerando a imensa falta de papel que a editora estava vivenciando por conta da guerra. O livro nunca seria enviado ou publicado. Owen retornou para a frente de batalha e morreu no início de Novembro.

No prefácio que tinha escrito – não mais que um rascunho inicial, curto, não polido, mas como quase tudo o que escrevia, muito eloquente -, Owen dizia que seu livro e sua poesia tinham a intenção de descrever não “a glória, a honra, a força, a majestade, o domínio ou o poder” da guerra, temas aceitáveis e esperados na época, mas “a Lástima da guerra”, deixando claro que a lástima que desejava acordar em seus leitores não era aquela de natureza sentimental que era comumente evocada por poetas de guerra tradicionais em suas elegias e lamentações pelos caídos na guerra, buscando retratar suas mortes como sacrifícios nobres em prol de uma significante causa que eles colocavam, tanto quanto a própria guerra, em um plano de heroísmo e necessidade que tinha dominado a consciência pública de então. Esses poemas de inclinação histórica visavam inspirar os leitores, fortalecer o esforço de guerra, heroicizar a imagem dos caídos e confortar os leitores que sofriam por seus próprios mortos. A poesia de Owen não tinha tanto a intenção de ser histórica quanto tinha a vontade de falar com aqueles que viviam agora – os homens que lutavam e a sociedade civil que permitia que tais horrores se perpetuassem – e sua mensagem não era de conforto, mas de denúncia. Sua escrita carregava e ainda carrega um aviso sobre o horror e a barbaridade do conflito armado, o desperdício humano de uma juventude abandonada, e a crueldade e indiferença de uma sociedade que mandava seus homens para a morte e por eles nada fazia. Sua intenção, de acordo com ele próprio, era produzir poesia diferente daquela de poetas que não eram tão radicalmente contrários à continuidade da guerra quanto ele, expressando sua crença na função poderosa de catarse da poesia. Ele termina seu prefácio defendendo seu realismo cru, sem qualquer floreio, e por vezes agressivo e incômodo: “o verdadeiro poeta deve ser verdadeiro”.

No início de sua carreira militar, Wilfred Owen tinha escrito para seu irmão dizendo que sabia que ele jamais poderia mudar quem ele era por dentro e se tornar um soldado confiante, mas que ele ainda tinha a esperança em um dia conseguir mudar sua forma de se apresentar para parecer e ser percebido por outros como um bom soldado. Ele alcançou essa ambição, salvando a vida de um grupo de homens que só sobreviveram por confiarem cegamente na noção de que Owen sabia o que estava fazendo em uma situação desesperada, e por isso recebendo uma condecoração que o fez um herói de guerra. Em sua busca pela imagem de um bom soldado, o rapaz em algum momento se tornou um. Mais do que isso, porém, ele se tornou a voz de milhões de soldados – soldados de todos os países, de todas as guerras, de todos os tempos – e faz ecoar até a atualidade a mensagem que ele tão desesperadamente queria fazer ser ouvida enquanto vivo e frustrado, tímido, cínico e sempre buscando a aprovação de poetas que ele via como seus superiores, mas que décadas depois viriam a registrar sua admiração por aquele que seria o melhor de todos eles.

Durante seu um ano como poeta, Owen foi brilhante; ninguém sabe a que alturas teria chegado se tivesse vivido. Seus poemas sobre a perda de jovens promissores, com muito para atingir, muito para dizer, morrendo na lama sem que uma alma sequer os olhasse com compaixão, trazem hoje, quando lidos com a possibilidade de se olhar para trás, uma estranha sensação de mórbida, trágica, terrível previsão, e com isso se tornam ainda mais amargos.

Por todo o seu tempo no exército, Owen lutou pelo fim da guerra. Lutou com sua poesia, com seus gritos de desespero e frustração impressos em tinta, com riscos e correções incontáveis buscando a melhor e mais autêntica representação possível de tudo o que ele via e queria que o mundo visse também, para que tivesse consciência do inferno que permitia. Para que não mais o aceitasse. Para que não mais o repetisse.

Por uma semana, não ouviu o calar das armas. Essa talvez tenha sido a maior injustiça de todas.

Seus poemas foram brilhantes. Nunca deveriam ter sido escritos.

Que tenham tido que ser foi, com certeza, a maior de todas as tragédias.

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