“As ruas lá fora”, de Raphael Araújo, cria um retrato franco das cidades e da vida urbana

A obra As ruas lá fora, do escritor Raphael Araújo, ganha potência ao desnudar o cotidiano de maneira visceral e íntima. As histórias com as quais chegamos a esbarrar por toda a vida, de vício, pobreza, abandono, e que passivamente nos acostumamos, são aqui tensionadas a seu máximo nível. Assim, o autor busca deliberadamente descontrair o leitor, denuncia o negligenciado e explora as partes mais vivas da cidade, mas também as mais ignoradas. 

O título, As ruas lá fora, remete ao cotidiano e prosaico visto como externo, o “lá fora” é dos esquecidos e distanciados. Composto por 15 contos, o livro como um todo os une pela abordagem das vidas dos marginalizados, explorando os medos, necessidades e desejos daqueles que têm sua vida afetada de forma incisiva e direta pelo sistema que os joga para escanteio. 

Diante dessa proposta, as narrativas permeiam o mundo não tão longe de nós do trabalho precarizado, do crime, do vício, da decadência e do desafio diário que é sobreviver. Mas, também da rotina, dos costumes, além do sonho e da esperança de “melhorar de vida”. Cria-se, então, a abertura para dar voz aos desvozeados, não digo aqueles que perderam sua voz – a capacidade de se posicionar – , mas daqueles que a tiveram forçosamente retirada ou ignorada. 

A sensação é que essas histórias não estão nem um pouco longe de nós, mas que passamos por elas todos os dias nas ruas sem a menor noção disso.

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A arte da guerra com orelhas 

O conto que abre a sequência se chama A arte da guerra com orelhas e, em um  enredo que explora o desconhecido como ameaça, transmite, também, como o desconhecido pode nos ser comum. A história tem como protagonista um homem jovem voltando para sua casa após um dia exaustivo de trabalho que encontra um outro sujeito vindo em sua direção. 

Nesse eixo, diversas situações se despontam. Robson, o protagonista, rememora momentos de sua vida como um amor que não deu certo; imagina como agir e o que faria se esse outro homem tentasse um assalto, enxerga-o como um adversário e busca em toda sua aprendizagem de vida dentro de casa e nas ruas formas de se proteger ou revidar. 

De um dia comum, a volta para a casa tarde da noite se torna uma guerra, e o desconhecido é ameaçador. Ninguém na rua, nem mesmo um cachorro para latir.

Vira-lata traíra. Noite gelada. Ritinha sem coração. E o Robson passava por tanta gente durante o dia. No ônibus, no metrô, nas ruas do centro. Semana depois de semana, gente desconhecida e gente que se repetia. Segunda, terça, quarta. Gente perdida e com lugar para ir. Quinta, sexta, sábado. Gente cinzenta, alta, apressada, de unhas roídas, cabelo colorido.

Assim, Robson se mantém diante do estranho com andar firme, passos largos, cara de bravo e um livro na mochila: “A arte da guerra”, um antigo tratado chinês que explora suas estratégias militares, amassado e com orelhas. A grande virada de chave do conto é quando toma-se noção de quem é aquele outro que, apesar de ser apresentado pelo protagonista como adversário e inimigo, é, na verdade, um igual: um jovem retornando do trabalho, com medo desse homem que age de maneira ameaçadora ou defensiva, louco para chegar em casa.

O Robson só queria ir para casa. E o outro sujeito também. Por isso passou sem dizer nada.

O outro passa por ele, entra no ônibus e pega sua edição amassada e com orelhas de “O príncipe” para ler. Além de cruzarem na rua, esses jovens têm suas vidas verdadeiramente cruzadas, atravessadas pelos mesmos medos e anseios. 

Carcaça de barro

Na história Carcaça de barro, o autor nos apresenta um conto muito mais experimental e contemplativo. Um homem no fundo do poço rememora os passos de sua decadência enquanto observa a chuva inundar sua região, um problema que, apesar de recair individualmente em todos nós, é resultado de nossa ação direta na natureza e afeta de forma aguda as regiões mais carentes da cidade. A inundação age como força comparativa aos rumos nos quais sua vida foi caindo. Entre um trabalho exigente e uma depressão profunda, o protagonista cai no vício. Então, entramos em contato com esse sujeito que parece estar em tratamento e tem a mente tomada por rancor e dificuldades, sem saber como sair dessa vida inundada. 

Agora a enchente confunde o lixo de fora com o lixo de dentro.

O que pensam os piolhos

Um outro conto que explora intimamente a vida nas ruas, mas de maneira mais crítica e forte, é O que pensam os piolhos. Nele, uma mulher tenta a sorte através de um boneco Smurf que promete dinheiro em troca de lembranças. 

A ideia parece descabida, mas é mais real do que qualquer coisa, isso pois o boneco nada mais é que uma ferramenta de Inteligência Artificial criada por uma empresa multinacional chamada TechnoMode, dona de uma plataforma de chat virtual. Assim, a empreitada consiste em oferecer dinheiro em troca de histórias, dados e lembranças das pessoas, a fim de aumentar seu banco de dados. Lembranças em troca de dinheiro. 

A grande questão que se dá nesse conto é o esforço descomunal que Manu, a protagonista, movimenta para conseguir dinheiro e almoçar. Ela, uma garota que foi presa por roubar pasta de dente e daí sua vida escalonou para pior. Ela, que se via perdida na imensidão da “cidade cabeluda” e nela se sentia um piolho, indesejada, inútil. 

Ela, que era curiosa e esforçada na escola, se vê na luta de conquistar um grande boneco Smurf que queria ouvir algo dela, algo que ela ainda não sabia o que podia ser e, enquanto isso, cedia partes e mais partes de si, tocando nos lugares mais feridos de sua vida. Nesse intento, poetiza sua história o máximo que pode, pois ouviu que um poeta das ruas faturou bem agindo assim. Deslocava os elementos da sintaxe e enchia sua história de metáforas enquanto arrancava cascas de seus machucados. 

O que têm de tão especial, afinal? A gente na vida de rua e sem tomar banho, pedindo dinheiro pra desconhecido, se arrastando nessa cidade cabeluda. Pra que saber o que pensam os piolhos?

A iniciativa de uma multinacional em comprar histórias das ruas é um dos vários exemplos do controle de classe e da divergência entre elas que Raphael Araújo não deixa de escancarar em seus contos. O grande Smurf é uma alegoria, poderia ser loteria, jogos de azar ou golpes da internet, poderia ser qualquer coisa que promete um sonho inútil aos que não têm mais aonde se agarrar. 

Em As ruas lá fora, o abismo entre o rico e o pobre é cenário de mergulho para o leitor, que explora do conhecido até as zonas abissais que a sociedade pode produzir. 

A força antagonista que a classe dominante opera nos contos explora tensões como uma pequena rixa com o jovem rico no ônibu patrãos, tornando possível reconhecer a corda bamba e frouxa sobre a qual  os menos favorecidos precisam caminhar todos os dias, esperando que algo os faça impedir de cair. Mas quais as chances?

É o caso do conto Uma em 50 milhões, em que um homem que acaba de ganhar na loteria e, logo mais, se vê numa turbulência aérea que pode, ou não, ter culminado em um acidente. Uma história de sorte grande e azar maior ainda, de esperança e desilusão.

Os últimos 4 contos da obra elevam-se a uma atmosfera mais subjetiva e contemplativa, explorando questões que partem menos da formação social e mais do íntimo de cada indivíduo e do próprio fazer literário. Há uma mudança na dicção e no tom das histórias, além dos personagens que as protagonizam, o que causa um contraste grande com a primeira parte da obra, mas que, quem sabe, sirva de um exercício do autor para novas abordagens. Talvez, uma maneira de ensaiar uma próxima obra. 

Nesses 15 contos de As ruas lá fora, os personagens e suas histórias são reconhecíveis, vivendo vidas como as nossas com dilemas universais que envolvem dinheiro, caráter e fé. Explorando as miudezas dessas vidas, o autor pinta um retrato sólido, vivo e triste do que há nas ruas lá fora e o que corre por dentro delas: insistentes batalhas internas e com o outro. 

Raphael Araújo fez graduação e doutorado em Letras na Universidade de São Paulo. Atua como professor do Ensino Médio e pesquisador junto ao Insitituto de Estudos da Linguagem da Unicamp. É tradutor de O pequeno príncipe, de Sant-Exupéry, e dos Cadernos, de Albert Camus. Tem textos de ficção publicados em diversas antologias. Recebeu o Prêmio Off-Flip 2021 e o Prêmio Mario Quintana 2023.

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