“Termodielétrico” aposta na poesia para contar a história do cientista Joaquim da Costa Ribeiro

Documentário Termodielétrico é dirigido por Ana Costa Ribeiro, neta do físico que descobriu o fenômeno através da cera de carnaúba

Na história da mitologia grega, após a derrota dos Titãs, os deuses pediram a Zeus que criasse divindades capazes de alegrar e inspirar a vitória dos olímpicos. Atendendo ao pedido, Zeus dormiu nove noites com Mnemósine, a deusa da memória. Dessa relação, nasceram nove musas. Com o tempo, a importância dessas entidades aumentou e elas se tornaram responsáveis pela inspiração humana, cada uma com uma função. A mais nova entre elas era Urânia, o nome faz referência ao seu avô Urano, pai de Zeus. Urânia é a musa da astronomia e das ciências exatas. Urânia teve um filho com Apolo, o músico Lino, inventor da melodia e do ritmo. De modo geral, as musas fazem analogia às diferentes formas de pensamento e criatividade, como a matemática, a história e a poesia, por exemplo. 

 Na entrada do museu de Astronomia do Rio de Janeiro, antigo observatório Nacional do Brasil, está a figura de Urânia, acompanhada de um globo terrestre e um compasso. Foi nesse museu que a diretora do filme e neta de Joaquim, encontrou o arquivo público do seu avô. Ana se deparou com mais de 800 documentos científicos. Em sua pesquisa, entre imagens, textos e experimentos, para além da genialidade do avô, que afinal havia descoberto um fenômeno, ela também conheceu um homem curioso, sensível e um pai afetuoso. 

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Engana-se quem pensa que vai assistir um filme didático sobre a biografia de um dos cientistas mais importantes do país. Com um olhar poético, o documentário consegue unir dois universos, que, em um primeiro momento, parecem antagônicos. No longa, poesia e ciência caminham juntos, de mãos dadas. Nesse encontro tardio mas poderoso entre avô e neta muitas reflexões são postas à prova. O que o público pode esperar é um filme que fala do tempo e dos ciclos da vida, das transformações que vamos sofrendo com o passar dos anos. É claro, o fenômeno termodielétrico está presente, no entanto, sua interpretação para além da física é o que parece interessar nesta narrativa.

– O filme é um encontro entre duas sensibilidades. A sensibilidade dele enquanto cientista e a minha como artista, poeta. Estamos lidando com materiais diferentes, mas eu acho que, sobretudo, o encontro se estabelece através da paixão pelo processo. O interesse pela pesquisa, da curiosidade sobre o mundo, sobre as coisas. Eu acho que nesse sentido, eu me encontrei com esse avô. Me senti identificada nesse lugar da curiosidade sobre o mundo. Ele tinha um olhar de perceber o mundo sem hierarquia, ele se interessava pelas mínimas coisas. Esse é um olhar muito poético – analisa a diretora.

Joaquim da Costa Ribeiro (1906-1960), foi um dos físicos mais relevantes do país, premiado e conhecido mundialmente. Carioca e filho de paraibanos, em 1928 se formou em engenharia pela Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Trabalhou no Instituto Nacional de Pesquisa e foi um dos fundadores do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Mas foi no ano de 1944 que o cientista viu sua vida se transformar. Ao estudar a cera extraída da carnaúba, uma árvore do semiárido nordestino, ele notou que o processo de mudança de estado físico de certos materiais, gerava correntes elétricas. Essa descoberta foi nomeada fenômeno termodielétrico.

– O meu interesse nessa história para além de entender o que era o fenômeno termodielétrico, era fazer analogias poéticas a partir dessa descoberta. A partir dessa mudança de estado que ele descobriu no laboratório derretendo um pedaço de cera de carnaúba, ele viu que surgiam correntes elétricas apenas a partir da mudança de estado, sem nenhuma interferência de eletricidade, eu achei que esse fenômeno natural poderia nos ensinar alguma coisa sobre o nosso processo, as transformações das nossas vidas, de uma fase para outra – reflete Ana.

Ao mergulhar na vida do seu avô cientista, a diretora, que era inclinada para o mundo das artes, passou a observar as coisas ao seu redor também a partir da ciência e da natureza. Aliás, esse é um exercício proposto pelo filme. O documentário é essencialmente interdisciplinar e por isso, nos faz refletir que existem diversas possibilidades de  compreender e absorver a realidade. 

– Eu  não estava acostumada a observar a realidade a partir das ciências naturais, o meu olhar para o mundo sempre foi através da arte, da literatura, do cinema. Então eu acho que olhar o mundo com essa curiosidade, com esse interesse mas a partir da natureza, foi algo novo para mim. Eu acho que a proposta do filme toda é essa, eu estava interessada em descobrir, mas  percebi que o que me interessava nessa história, que o coração desse filme estava na minha apropriação poética dessa descoberta científica – me contou Ana Costa.

Dividido em atos e com narração da diretora, o documentário é classificado por Ana como um filme experimental e que tem como proposta a integração entre as disciplinas. Dentro de uma cena em um laboratório, o público é surpreendido por um poema de Rainer Maria Rilke ou Emily Dickinson. É por meio dessa fusão de percepções que a narrativa do filme é construída. Podemos assim notar que há uma triangulação nessa história, a exatidão da ciência, a abstração do tempo e a sublimação da poesia. É essa tríade potente que segura na mão do telespectador do início ao fim do filme. 

Sobre o processo criativo, Ana pontua que “o filme foi se transformando à medida que as pesquisas iam avançando. Ele não foi sempre assim narrado. Eu comecei conversando com pesquisadores e filmando essas conversas, num primeiro momento eu achei que o filme pudesse ter uma pegada mais clássica, dos cientistas falando sobre o fenômeno e aí rapidamente isso foi descartado. Resolvi assumir a narração completa porque me daria muita liberdade narrativa. Eu posso fazer uma espécie de um caldeirão de vozes no qual eu coloco a voz do meu avô, a minha voz, a voz da minha avó, as vozes dos cientistas, poetas, poderia ler os poemas de outras pessoas, trechos de artigos científicos. Conceitos da ciência que eu pesquisei. Eu fiz questão de não criar muita separação de vozes, eu acho que essa é uma proposta do filme também. De integração entre as coisas e não a separabilidade das coisas”. 

A cineasta, escritora e artista visual, diz que a memória é um dos temas que a persegue. Ao longo de sua carreira, Ana produziu curtas-metragens e séries documentais. Termodielétrico é seu primeiro longa-metragem e novamente, Mnemósine, a deusa da memória atravessou seu caminho, dessa vez, acompanhada de sua filha Urânia, musa dos cientistas. Desse modo, o filme possui a capacidade de transmitir ao público o diálogo entre essas forças e o efeito que elas possuem nas nossas vidas. 

– Eu tenho muito desejo que esse filme comunique com pessoas para além do circuito do cinema de arte. Eu gostaria muito que o filme pudesse ter uma saída para jovens do Brasil inteiro e que pudesse incentivar jovens que queiram ser pesquisadores tanto na área de ciências como também na área de artes. Não só trazer o fenômeno termodielétrico para suas vidas, mas também que possa ter um incentivo à pesquisa. Eu espero que ele possa se comunicar para pessoas de todas as áreas.

O filme estreia neste dia 10 de outubro nas cidades de Salvador, Belo Horizonte, São Paulo e Fortaleza. A estreia no Rio de Janeiro foi adiada para a próxima semana devido ao Festival de Cinema que ocorre na cidade.

Veja o trailer de Termodielétrico aqui:


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