É possível dizer que o ano de 2018 instaurou um triste capítulo na história político-social do Brasil. Quem viveu esse período sabe: falas nefastas emergiram do esgoto, e ninguém tinha mais vergonha de dizer: “Deus me livre minha filha ser lésbica”. Desejavam, a qualquer custo, restabelecer os bons costumes, os quais, segundo eles, estavam perdidos. Na época, um candidato à presidência da República, aproveitando a ascensão da extrema direita estadunidense, legitimava esse asqueroso comportamento. É nesse cenário tenebroso que Maurício Gomyde tem a ideia de escrever seu mais novo romance, O cidadão de bem.
A história acompanha dois núcleos familiares. De um lado, temos a família de Rafael, um jornalista que está tentando seguir uma carreira literária. Ele é separado de Luciana, com quem teve duas filhas. Rafael mantém uma página no Facebook chamada GentilezaOnline, na qual publica mensagens contra o ódio. Do outro lado, há a família de Roberto, um médico renomado, casado com Laura, uma advogada respeitada, com quem tem dois filhos. Eles são uma família de classe média alta, que emprega uma trabalhadora doméstica negra — sem direitos trabalhistas — mas sempre rezam antes das refeições e, claro, não faltam aos cultos de domingo.
Enquanto Rafael escreve reportagens denunciando trabalhos análogos à escravidão, Roberto é seu antagonista, chegando ao ponto de mandar o filho colar cartazes de ódio na escola. Apesar de não se considerar preconceituoso, Roberto se comporta como um homofóbico, racista, misógino e aporofóbico. Além disso, ele possui uma arma — para proteger a integridade da família, segundo ele.
Os dois núcleos familiares mantêm relações, uma vez que os filhos de Rafael e Roberto são amigos de escola. Além disso, a GentilezaOnline, página administrada por Rafael, começa a receber comentários abomináveis de Roberto disfarçado de DoctorBob:
DoctorBob: Homens, abracem a causa feminista? Que idiotice é essa? É a favor da igualdade? Então seja coerente e brigue pelo alistamento militar obrigatório das mulheres, seja contra a mulher se aposentar mais cedo e contra a licença-maternidade de seis meses, lute para acabar com as Delegacias da mulher e, claro, quando precisa abrir um pote de maionese não venha chamar um homem para fazer o serviço. kkk. Ser mulher já tem vantagens demias, não é possível você não perceber. Esse papinho aí eu chamo de Femimiminismo. (p. 69)
Alguns diálogos são intragáveis e indigestos, de fato. Enquanto lia o livro, lembrei-me do filme Infiltrado na Klan (2018), de Spike Lee, especialmente no que diz respeito às falas criminosas – não me espantaria se Roberto elogiasse a KKK- Tanto o personagem de Gomyde, quanto os criminosos da KKK de Spike Lee, não escondem o desejo de eliminar todos aqueles que não se encaixam na perspectiva hegemônica: hétero, branco e cristão. Destaco, também, a conversa entre Alice e Angélica, filhas de Rafael e Roberto, respectivamente. Angélica, acostumada com os incessantes discursos moralizantes do pai, estranha que sua amiguinha não mora com o pai e a mãe na mesma casa:
“A Angie falou que toda a família tem que ter o pai e a mãe casados e você e papai não são casados e se os pais não são casados isso não é família.” (p.50)
Não há espaço para quem não se enquadra na perspectiva hegemônica, na perspectiva do cidadão de bem. Afinal, o que seria essa expressão tão usada, ultimamente? Para Egon Rangel, especialista em Análise do Discurso, separam-se os campos do ‘eu-nós’ e dos ‘outros’ como dois campos opostos, do bem e do mal; definem-se as características positivas do primeiro por oposição às negativas do segundo, sem, contudo, especificar no que consiste o bem a que a expressão se refere; não se diz quem está de um lado e quem está do outro.”É exatamente dessa forma que Roberto se encontra, luta, a todo tempo, contra fantasmas inexistentes. Maurício Gomyde, ainda, explora a hipocrisia do chamado cidadão do bem. Após despedir a empregada, por suspeitar que o filho estava tendo relações com uma negra, e deixá-la sem rumo, a família vai cumprir o protocolo de sujeitos decentes:
“O culto da família no início da noite foi especial. Igreja lotada, banda afiada, louvores entoados com arrebatamento e júbilo. Abraçado a Laura e Angélica, Roberto consagrava a família e o lar no altar. Cantava, de olhos fechados, o refrão que celebrava a graça pela união das famílias. Mais cedo eles haviam reforçado um importante valor dessa união, ao afastarem uma tentação e recolocarem Mateus no caminho da retidão. Nas intenções da oração, clamaram o nome do filho. Pediram uma couraça ao redor do coração e que, sobre sua cabeça, não pousassem mais tribulações. Por fim, rogaram a sorte de um dia ele encontrar uma boa menina para constituir uma família sólida como a deles. A oferta colocada por Angélica na bandeja foi mais gorda que o habitual.” (p. 179)
Marício Gomyde, por fim, desafia o leitor a questionar suas próprias convicções e a refletir sobre o papel do indivíduo na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. A crítica social que Gomyde faz é incisiva, utilizando-se de uma prosa clara e objetiva para destacar o perigo de uma mentalidade conservadora que, em nome de uma suposta “ordem”, ignora a complexidade da realidade social e os direitos das minorias. Termino este texto com um questionamento, presente no livro e que há muito tempo me inquieta: “Eu fico me perguntando qual foi o momento. Todo mundo já era assim e tava preso num armário escuro? Quem chegou com a chave e destrancou, liberando este exército de zumbis?
Quem é Maurício Gomyde?
Tem livros publicados em 6 países e foi finalista do Prêmio Jabuti 2016, com “Surpreendente!” “O cidadão de Bem” é seu oitavo romance, o segundo pela Qualis, que já publicou “Ainda não te disse nada”. Compre o livro aqui
1 comentário