“4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”, o passado, presente e futuro dos direitos reprodutivos

Em muitas ocasiões, o cinema serve como denominador comum das experiências humanas. Assistimos a um filme de outros lugares e tempos, para maravilhosamente nos identificarmos com o que se passa nas telas, porque o mesmo está acontecendo ou já aconteceu na nossa realidade. Hoje falamos de aborto: um procedimento simples – mais simples que extrair um dente, segundo a rede médica Doctors for Choice! – mas que é proibido, e querem que seja ainda mais restrito num país assolado por ignorância quando o assunto é educação sexual e também pela violência sexual. O filme romeno “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”, ganhador da Palma de Ouro em Cannes, é um soco no estômago de quem, como nós, está a anos-luz da situação ideal quando o assunto são direitos reprodutivos.

O filme se passa na Romênia em 1987. Num alojamento estudantil, as amigas Otilia (Anamaria Marinca) e Gabriela, apelidada de “Gabita” (Laura Vasiliu), têm planos para aquela noite. Numa tarde cinzenta, Otilia sai para fazer os últimos acertos para que uma delas faça um aborto clandestino – até ali, não sabemos qual das duas está grávida.

Já passa dos trinta minutos de projeção quando vem a resposta: é Gabita que está grávida, de três meses, e contratou o Sr Bebe (Vlad Ivanov) para lhe fazer um aborto inserindo uma sonda no útero para provocar sangramento e contrações – mesmo método usado em outros filmes que tratam do aborto no passado, como “Um Assunto de Mulheres” (1988) e “O Acontecimento” (2021). No quarto de hotel duramente reservado para o procedimento, Gabita e o Sr Bebe refazem as contas e se dão conta: ela está grávida de mais de quatro meses. Começa então uma discussão com o Sr Bebe, um homem arrogante que fala duras verdades – o pior tipo para quem está numa situação-limite.

Depois de inserida a sonda em Gabita, o Sr Bebe vai embora e Otilia tem de se ausentar por algum tempo devido a um compromisso inadiável: o aniversário da mãe de seu namorado, Adi (Alexandru Potocean). Na mesa do jantar, Otilia fica distante, pensando em Gabita em meio a uma conversa enfadonha de família e amigos. Quando confrontada por Adi, ela confessa que havia recém ajudado a amiga a fazer um aborto, e faz uma provocação: e se fosse ela que estivesse grávida, Adi a ajudaria? Ele desconversa, fala que isso não aconteceria com eles – sendo a negação mais um chamariz que uma certeza reconfortante no caso de problemas.

Na Romênia, o crime de interrupção da gestação era considerado como aborto apenas até os três meses de gravidez. A partir do quarto mês, o crime era homicídio, com penas variando entre cinco e dez anos de prisão. É por causa de entraves ao aborto que as gestações vão se prolongando. Isso também acontece com frequência nos casos em que a pessoa gestante não tem informação ou conhecimento do funcionamento do próprio corpo, como no caso de jovens vítimas de violência sexual – basta lembrar que a maioria das vítimas de estupro são meninas menores de 13 anos e temos aí um retrato funesto, ainda mais considerando a recente tentativa brasileira de criminalizar aborto em caso de estupro após 22 semanas de gestação.

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De voz mansa, quase infantil, Gabita – apresentada assim, por um apelidinho carinhoso – é já inofensiva, e se encontra numa situação que a diminui e violenta, inclusive literalmente. O Sr Bebe foi recomendado por uma amiga de uma amiga de Gabita, num networking de sororidade que sempre existiu. Isso, contudo, não faz dele um herói, mas sim um mal necessário – e até mesmo “mau necessário” – no caminho das duas amigas.

O filme mostra com enquadramentos quem manda na situação: é o Sr Bebe. Seja cortando a cabeça de Gabita da cena quando eles dialogam ou mostrando em close as mãos dele colocando as luvas cirúrgicas, ele está no centro do frame. Depois de colocada a sonda, Gabita e Otilia conversam sobre o fato incômodo de ter sido um homem a ajudá-las – porque aquela foi uma ajuda, ainda que permeada de violência.

O close no feto morto perto do final pode dar pano pra manga para discussões com os “pró-vida” – escrito entre aspas porque não têm nada de a favor da vida, visto que não se importam com os impactos negativos de uma gestação indesejada na vida de meninas, mulheres e outras pessoas com útero. Não, não é um ser humano em miniatura que foi assassinado. Não é um ser consciente que vai ressentir o que sua mamãe lhe fez por toda a eternidade.

Na Romênia, desde 1967, não apenas o aborto era proibido, mas também a venda de anticoncepcionais. A lei mudou em 1990, tornando o aborto legal até 14 semanas de gestação – o que significa que Gabita, com 19 semanas como no filme, não teria acesso ao procedimento legalmente, a menos que houvesse “razões terapêuticas” apresentadas. Mesmo com o amparo da lei, o acesso ao aborto na Romênia vem diminuindo, com poucos hospitais públicos oferecendo-o e hospitais particulares cobrando muito caro por ele – o que mostra que a legalização é apenas uma parte da luta, depois dela a peleja continua para manter o procedimento acessível.

Após a inserção da sonda, para algumas o aborto acontecerá em questão de horas, para outras levará dias. A experiência de um aborto é muito pessoal, assim como a própria decisão de se submeter a um. E só haverá respeito quanto a isso quando todas tiverem o direito de decidir.

Veja o trailer do filme aqui:

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