O que grandes pinturas e esculturas clássicas têm em comum?
Cada uma guarda um detalhe que muitas vezes passa despercebido, mas que traz à tona seu significado profundo.
Essa, pelo menos, é a premissa do livro A New Way of Seeing: The History of Art in 57 Works (“Uma Nova Maneira de Ver: A História da Arte em 57 Obras”, em tradução livre), de Kelly Grovier, um estudo que convida os leitores a se reconectar com obras que, de tão familiares, não são mais observadas de forma detida.
Tomando como ponto de partida as imagens mais reverenciadas de toda a história da humanidade, a autora foi buscar o que torna a arte grandiosa — por que algumas obras continuam reverberando no imaginário popular século após século, enquanto a vasta maioria das criações artísticas escapa da nossa consciência quase tão rápido quanto interagimos com elas.
A seguir, um breve resumo de alguns dos detalhes mais extraordinários que a autora encontrou — toques de estranheza que revigoram, muitas vezes de forma subliminar, muitas das imagens mais famosas da História da Arte.
Tapeçaria de Bayeux (c. 1077 ou depois)
As mulheres esquecidas que, um milênio atrás, bordaram os 70 metros de tecido sobre os quais a Tapeçaria de Bayeux narra os acontecimentos que levaram à Conquista Normanda, não eram apenas costureiras primorosas, mas contadoras de histórias excepcionais. Ao agarrar a flecha, o ferido Harold confunde sua própria identidade com a do artista e do observador, cujo próprio olho é levado adiante, cena após cena. Com um único ponto, nosso olho, o de Harold e o da agulha da costureira se transformam em um só.
Sandro Botticelli, ‘O Nascimento de Vênus’ (1482-1485)
Uma espiral de cachos dourados suspensa no ombro direito da deusa na obra-prima renascentista de Sandro Botticelli, O Nascimento de Vênus, funciona como um motor em miniatura no eixo vertical da pintura, impulsionando-a para nossa imaginação. Uma curva logarítmica perfeita, não é um ornamento incidental ou acidental do pincel. O mesmo vetor giratório, que pode ser observado no mergulho das aves de rapina e na espiral das conchas de nautilus, hipnotiza pensadores desde a antiguidade.
Hieronymus Bosch, ‘O Jardim das Delícias Terrenas’ (1505-1510)
Que um ovo está escondido à vista de todos no centro do festival de peripécias carnais de Hieronymus Bosch (mais precisamente, equilibrado no topo da cabeça de um cavaleiro), é de conhecimento de críticos e fãs da pintura. Mas como esse detalhe delicado desbloqueia o significado mais verdadeiro da obra?
Se fecharmos os painéis laterais do tríptico para revelar o revestimento da obra e o ovóide fantasmagórico de um mundo frágil que Bosch retratou na parte externa — uma orbe translúcida flutuando no éter —, descobrimos que ele concebeu sua pintura como uma espécie de ovo para ser quebrado e permanecer intacto indefinidamente, cada vez que interagimos com a complexidade da obra.
Ao abrir e fechar a pintura de Bosch, estabelecemos alternadamente um mundo novo em movimento ou voltamos no tempo para antes da criação, antes da nossa inocência ser perdida.
Johannes Vermeer, ‘Moça Com Brinco de Pérola’ (c. 1665)
A moça que usa um brinco de pérola reluzente no famoso quadro de Vermeer se volta perpetuamente em nossa direção ou para longe de nós? O adereço em torno do qual gira o mistério da pintura é apenas um pigmento da sua imaginação. Com um movimento de pulso e duas pinceladas habilidosas de tinta branca, o artista enganou o córtex visual primário do lobo occipital de nossos cérebros. Aperte os olhos com a força que quiser, não há nenhum gancho ligando o ornamento à orelha. Sua própria esfericidade é uma farsa. Desejamos que o brinco estivesse suspenso na ausência de gravidade a partir dos mais insignificantes apóstrofos brancos. A joia preciosa de Vermeer é uma ilusão de óptica opulenta, que se reflete em nossa própria presença ilusória no mundo.
JMW Turner, ‘Chuva, Vapor e Velocidade – A Grande Estrada de Ferro do Oeste’ (1844)
Não é nenhum segredo que Turner escondeu uma lebre correndo no trilho obscuro da locomotiva que se aproxima. O próprio artista chamou atenção para este fato a um menino que visitou a Royal Academy no dia do envernizamento da obra, quando o quadro estava prestes a ser exposto.
Desde a antiguidade, a lebre simboliza o renascimento e a esperança. Os visitantes que viram a pintura quando a mesma foi exibida pela primeira vez em 1844, ainda estavam sob impacto emocional do horror de uma tragédia ocorrida na véspera de Natal dois anos e meio antes, quando um trem descarrilou a 16 quilômetros da ponte retratada na pintura — um acidente que matou nove passageiros da terceira classe e mutilou outros 16.
Georges Seurat, ‘Um banho em Asnières’ (1884)
A grande pintura que retrata parisienses desfrutando preguiçosamente a hora de almoço às margens do rio Sena, a primeira obra exibida por Seurat, foi terminada inicialmente em 1884. Ela foi retocada pelo artista anos mais tarde, depois que ele começou a aperfeiçoar sua técnica de aplicação de pequenos pontos distintos que são coerentes ao olhar do observador quando vistos à distância.
A teoria da cor subjacente ao estilo pontilhista mais maduro de Seurat deve sua origem, em parte, às ideias de um químico francês, Michel Eugène Chevreul, que explicou como a justaposição de matizes pode gerar uma persistência de tons em nossa imaginação.
Na distância nebulosa da pintura de Seurat, uma fileira de chaminés se ergue de uma fábrica que produzia velas, de acordo com a inovação industrial pela qual Chevreul também era responsável.
Edvard Munch, ‘O Grito’ (1893)
Há muito se supõe que a figura de O Grito, de Edvard Munch — um arquétipo de angústia que ainda povoa o imaginário popular mais de um século depois de ter sido criado — deve sobretudo a expressão de pavor congelada no rosto a uma múmia peruana que o artista encontrou na Exposição Universal de 1889 em Paris.
Munch deve ter ficado ainda mais profundamente impressionado com o espetáculo de tirar o fôlego de uma enorme lâmpada incandescente repleta de 20 mil lâmpadas menores que se elevava em um pedestal sobre o pavilhão na mesma exposição.
Um tributo às ideias de Thomas Edison, a escultura se erguia como um deus cristalino anunciando uma nova idolatria, acionando um interruptor na mente de Munch. Os contornos do rosto de O Grito refletem com extraordinária precisão a mandíbula caída e o crânio bulboso do assustador totem elétrico de Edison.
Gustav Klimt, ‘O beijo’ (1907)
Sem dúvida o amor e a paixão estão no extremo oposto dos longos jalecos brancos e lâminas para microscópios de testes científicos. Não de acordo com a pintura O Beijo, de Gustav Klimt. No ano em que pintou sua obra, Viena efervescia com a linguagem das plaquetas e células sanguíneas, especialmente nos arredores da Universidade de Viena, onde o próprio Klimt fora convidado, anos antes, a criar pinturas baseadas em temas médicos. Karl Landsteiner, um imunologista pioneiro da universidade (o primeiro cientista a distinguir os grupos sanguíneos) estava trabalhando duro para fazer as transfusões de sangue serem bem-sucedidas.
Olhe mais de perto a curiosa estampa do vestido da mulher na pintura de Klimt e, de repente, você constata o que são: placas de Petri pulsando com células, como se o artista nos tivesse oferecido uma tomografia da sua alma. O Beijo é a biópsia luminosa do amor eterno de Klimt.