Um dos maiores nomes da literatura russa, se não até mesmo o maior, Fiódor Dostoiévski recriou em suas obras muito do mundo que o cercava, fornecendo aos leitores um detalhado retrato da sociedade russa do século XIX através de sua narrativa realista. Não só ele apresenta a sociedade e põe em pauta sérios problemas sociais, como suas obras também se aprofundam no psicológico de cada um dos personagens, explorando assim não somente a humanidade como um grupo disfuncional, mas a própria mente em si, focalizando o ser humano como um ser complexo e único. Cada um de seus personagens possui características bastante particulares, o que faz com que seus romances sejam o que o teórico Bakhtin chamou de polifônicos, ou seja, possuem diversas vozes que apresentam ideias próprias, diversas da perspectiva do escritor.
Autor de clássicos como Crime e Castigo e Memórias do Subsolo, Dostoiévski é um autor cuja leitura é essencial para todo leitor que deseja compreender melhor a si mesmo e ao próximo. Veja abaixo cinco motivos para ler a obra de Dostoiévski e tenha uma boa leitura.
- Conhecer a cultura russa
Quando lemos um livro estrangeiro, muitas vezes podemos ver detalhes na narrativa que revelam costumes diferentes, acontecimentos marcantes ou até mesmo descrições geográficas de locais onde nunca estivemos pessoalmente, mas a literatura pode ser uma forma de viajar até lá, através das palavras do autor. E Dostoiévski é ótimo para guiar o leitor pela São Petersburgo do século XIX. Acompanhamos Raskolnikov, protagonista de Crime e Castigo, a andar pelas ruas de São Petersburgo, as quais são citadas por nome, e conseguimos até visualizá-lo claramente aos redores da Ponte Kokuchkin e outros pontos da cidade citados pelo autor. Aconselho pegar uma edição com uma tradução direto do russo, e com notas de roda pé, as quais costumam explicar algumas expressões russas, como são no original e como se encaixam na tradução. A de Boris Schnaiderman, publicada pela editora 34, é bem completa.
- Mergulhar na mente humana
Conforme dito na introdução, Dostoiévski não escreve personagens planos: seus personagens têm personalidades fortes e diversas camadas, assim como pessoas reais. Suas opiniões podem ser controversas quanto a do autor, e alguns deles, como o próprio Raskolnivok, passam por um processo de evolução psicológica ao decorrer do livro. Outras obras nas quais o psicológico é explorado de forma bem aprofundada são Memórias do Subsolo e O Duplo. Em Memórias do Subsolo, livro este narrado em primeira pessoa, o protagonista diz ter coisas que o homem não ousa revelar sequer a si mesmo, e boa parte da narrativa se passa de maneira introspectiva, através de devaneios e descrições de desilusões do narrador, o qual diz ser um homem mal, e quer nos fazer entender porquê. Já em O Duplo, o protagonista, Golyadkin, é um sujeito bastante sofrido, o qual não obtém sucesso em área alguma de sua vida e é propenso a estranhas obsessões. Um dia, Golyadkin vai a uma festa sem ser convidado, é expulso do lugar e, ao vagar pela noite, encontra um homem idêntico a ele, o qual também se chama Golyadkin. A partir daí, toda a narrativa se desenrola mostrando como este outro homem é mais bem sucedido do que o primeiro Golyadkin, e começa a sabotar sua vida. Podemos ver como o tema do duplo é uma forma fantástica de trabalhar com desejos reprimidos do personagem, o qual se perdem em seu inconsciente e ele chega a acreditar na existência de outra pessoa para que tais atitudes possam ser concretizadas. Enfim, esta é uma interpretação possível, no entanto, o interessante das obras de Dostoipévski é exatamente o fato de ela permitir que o leitor leia e releia suas narrativas, encontrando a cada leitura novos significados: isso é, segundo Italo Calvino, um dos fatores que definem o clássico.
- Pensar e repensar como vemos a sociedade
Ao ler sobre um tabu como um personagem que defende o direito de cometer crimes, como é o caso de Crime e Castigo, é impossível que isso não desperte no leitor uma boa reflexão sobre o tema. E mais ainda quando a história segue e revela a cena do assassinato em si, seguida por um Ralskolnikov que, por mais que não queira a princípio admitir, é atormentado pela culpa por seu crime.
Outra obra que é uma semente para gerar reflexões é o conto O Sonho de Um Home Ridículo, presente no livro Duas Narrativas Fantásticas, também publicado pela editora 34. Neste livro, vemos um homem que está prestes a cometer suicídio, uma pessoa cuja indiferença pela vida é tão intensa que já nem consegue decidir um momento para por um fim a sua existência, de tão iguais e monótonos que seus dias se tornaram. No entanto, em uma noite, após ver uma criança na rua e uma solitária estrela no céu, pensa que aquela seria uma boa noite para morrer. Porém, ao pegar a arma, acaba adormecendo com a arma na mão e sonha com um mundo utópico, o qual ele mesmo acaba, acidentalmente, destruindo. Ao acordar, ele se lembra da pureza, da inocência do mundo no início do sonho, e quer trazer aquela pureza para sua vida. Assim, o homem desiste do suicídio e resolve tentar viver e fazer do mundo um lugar melhor.
- Conhecer pessoas quase tão reais como nós mesmos (e observar o desenvolvimento de personagens realistas!)
Conforme comentado acima, os personagens do mundo de Dostoiévski são criaturas complexas, multifacetadas, profundas, as quais nós leitores podemos conhecer e tentar compreendê-las, assim como tentamos compreender aqueles que nos cercam. Além disso, ao se deparar com personagens assim, aqueles mais inclinados à criação literária têm muito que aprender com o mestre russo, e ler e reler suas obras pode ser uma boa aula de escrita.
- Observar relações entre suas obras e as de outros escritores e entender referências posteriores
A literatura é em si uma infinda teia de conexões, e é impossível que algo seja completamente original, isolado de tudo o que foi criado anteriormente. Ou seja, intertextualidade faz parte da literatura, e ler autores de grande influência como Dostoiévski é importante para compreender muito do que veio depois dele, assim como também é possível ver nas obras do escritor russo temas em comum com outros autores anteriores, e este tipo de percepção permite ao leitor ter uma visão mais ampla e crítica da literatura e de cada obra lida.