Sim, não restam dúvidas: o filme A Chegada, de Denis Villeneuve, é uma das obras mais relevantes da ficção científica lançadas este ano. Trata-se de uma excelente trama dramática que, dentre outras coisas, é capaz de nos fazer acreditar novamente no gênero e que, surpreendentemente, também nos faz crer, mesmo que por um momento, que os filmes que buscam retratar o contato entre seres humanos e extraterrestres ainda são capazes de nos emocionar, bem como situar o conflito entre espécies a partir de abordagens absolutamente criativas e originais em termos de construção do roteiro e da narrativa como um todo.
E, apesar de tratar-se de uma narrativa de ficção científica “hard” – um dos muitos subgêneros ficcionais da ficção científica que tem como característica principal, em linhas gerais, a presença de um detalhamento científico explícito e relevante para o enredo -, que agradou especialmente aos espectadores que nutrem mais afeição e proximidade com a ciência, sejamos sinceros: os verdadeiros protagonistas de A Chegada são, sem sombra de dúvidas, os linguistas (e consequentemente a Linguística, claro), e isso pode ser lido como um elogio e como uma atitude afirmativa em relação a essa carreira e a essa área do conhecimento que, como vemos graças à personagem interpretada pela atriz estadunidense Amy Adams, são muito mais relevantes do que a importância que a nossa sociedade costuma dar a eles. E a hipótese linguística que emana do conflito central do filme (que é, por sua vez, uma adaptação de um conto intitulado História da Sua Vida, de autoria do escritor estadunidense Ted Chiang) é, não por menos, uma das ideias mais relevantes e mais debatidas pelos profissionais inseridos nesse fascinante campo de estudos.
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É possível, no entanto, que muitos já conheçam as premissas e o enredo propriamente dito dessa mais nova produção do canadense Denis Villeneuve: 12 naves intergalácticas invadiram a terra em diferentes partes do globo causando pânico, medo e aterrorizando a população em geral diante da incerteza do que esses seres extraterrestres pretenderiam fazer no planeta terra. E é, portanto, a partir dessa chegada que cientistas de todos os cantos do mundo trabalham sem descanso para descobrir se suas intenções são boas ou más, se trata-se de um contato hostil ou não. Mas é Louise Banks, doutora em Linguística, quem irá efetivamente tentar decifrar a língua desses seres desconhecidos para solucionar esse mistério. Com o passar dos meses, no entanto, Louise começa a constatar como o seu contato com esses seres alienígenas – conhecidos como heptapods, por conta da sua estrutura física ter um aspecto simétrico com 7 extremidades -, está afetando a sua forma de ver o mundo.
Para além de revelações desnecessárias do enredo que poderiam ser feitas, contudo, reside a teoria linguística em que se baseia o fenômeno que ocorre no filme, conhecida como relativismo linguístico – ou, mais frequentemente, como hipótese Sapir-Whorf. Na década de 1940, os pesquisadores Edward Sapir e Benjamin Whorf conceberam uma corrente de pensamento que, posteriormente, seria a antítese da gramática universal elaborada pelo conhecido linguista estadunidense Noam Chomsky. Segundo a hipótese Sapir-Whorf, há uma relação intrínseca entre as categorias gramaticais da língua falada por um indivíduo qualquer e a forma como esse mesmo indivíduo entende e concebe o mundo ao seu redor. Nesse sentido, teoricamente pensaríamos com palavras, e por isso um chinês não pensaria da mesma forma do que uma pessoa que fala inglês ou do que alguém que eventualmente fale francês.
O certo, no entanto, é que nos dias de hoje a hipótese forte dessa teoria é muito controversa e, por conta disso, não há um consenso dentro da comunidade científica a esse respeito, já que ainda não foi possível prová-la de uma maneira clara, com argumentos substanciais. Cabe mencionar, ainda, que nos anos seguintes às publicações de Sapir e Whorf descobriu-se que os exemplos que foram utilizados por eles para sustentar a sua tese partiam de premissas e afirmações duvidosas sobre o uso da língua pelos diferentes falantes que eles haviam analisado. Contudo, até o momento, as críticas que são feitas nesse sentido ainda não foram capazes de refutar substancialmente alguns dos argumentos mais importantes que são defendidos pelos relativistas sapir-whorfianos.
Dê-me palavras para as cores e eu as distinguirei melhor
Um dos textos em que se baseia o whorfianismo moderno é um livro publicado em 2010 pelo linguista israelense Guy Deutscher. Em sua pesquisa, Deutscher analisou como os russos, que possuem duas palavras em sua língua para se referirem à cor azul (fazendo sempre a distinção entre o azul claro e o azul escuro), eram capazes de distinguir dois tons distintos de uma forma mais rápida do que os ingleses, por exemplo, cuja língua possui apenas uma palavra para essa cor. Nesse mesmo livro, Deutscher comentaria como algumas tribos nativas da Índia possuem um vocabulário mais rico e diverso ligado às experiências espirituais, cujos conceitos são diretamente incompreensíveis para os que não conhecem essas línguas. Trata-se de uma ideia parecida quando frequentemente se menciona, por exemplo, a partir do conhecimento popular, que na Grécia Antiga não havia uma palavra para a cor azul e que esse, portanto, era um conceito que não se percebia naquela época pelos falantes do grego antigo.
Em relação ao poder da língua em supostamente determinar o mundo de seu falante, também já se refletiu cientificamente a partir de uma pesquisa com macacos de nariz branco. De acordo com esse estudo, tais primatas nigerianos possuem duas palavras para chamar a atenção dos outros indivíduos da mesma espécie: uma para avisar sobre a iminente aproximação de um leopardo e outra para referir-se à presença de águias nas proximidades do grupo. E quando emitem as duas palavras ao mesmo tempo, os macacos estudados querem dizer em tom de alerta, basicamente, “vamos embora daqui”. Essa ideia de combinar duas sílabas para criar uma sintaxe, de coadunar dois conceitos para elaborar um terceiro seria, portanto, um aspecto primitivo ligado à evolução humana e relacionado à capacidade de construir uma língua a partir de conceitos básicos.
Dê-me duas categorias de gênero e eu te direi o grau de sexismo presente na sua língua
Uma importante pesquisa realizada em Cambridge, no Reino Unido, mais especificamente no campo da psicolinguística, buscava colher respostas para vários questionários aplicados em indivíduos bilíngues cujos primeiros idiomas seriam o chinês, o grego, o espanhol, o indonésio, o russo, o inglês ou a língua dos aborígenes australianos. Uma das perguntas solicitava que o participante descrevesse, com adjetivos, objetos de uso diário. O que os pesquisadores comprovaram a partir das respostas foi que, embora as perguntas tivessem sido feitas e respondidas por todos os participantes na língua inglesa, havia uma diferença fundamental no momento de selecionar esses adjetivos entre os indivíduos cuja língua materna categoriza objetos em um gênero feminino ou em um gênero masculino.
Assim, por exemplo, a palabra “chaves” era, para os hispanofalantes, “douradas”, “pequenas”, “encantadoras” ou “brilhantes”, enquanto que para os falantes da língua alemã, que concebe “chave” como um substantivo masculino, poderiam ser “resistentes”, “pesadas”, “metálicas” ou “úteis”. As “pontes” – que ao contrário do português (“a ponte”), é substantivo masculino no espanhol (“el puente”) -, eram para os hispanofalantes “grandes”, “perigosas”, “robustas”, enquanto que para os alemães, cuja língua, assim como no português, categorixa “ponte” como uma palavra feminina, eram “bonitas”, “elegantes”, “frágeis” e “seguras”.
Há, ainda, linguistas dentro do espectro teórico relativista que acreditam que vantagens cognitivas da aprendizagem das línguas podem ter determinado o salto evolutivo dos seres humanos em plena construção civilizacional. Essa é, talvez, uma das abordagens mais radicais dentro desse campo – e é, em linhas gerais, a ideia que vemos refletida em A Chegada. Segundo o filme de Villeneuve, é crucial que os seres humanos aprendam a língua dos alienígenas.
Quem veio primeiro, a língua ou a cultura?
A maior crítica recente a essa teoria relativista provém do acadêmico John H. McWhorter, que em seu livro The Language Hoax, publicado em 2014, explica exaustivamente como as célebres hipóteses dos partidários da corrente de Sapir-Whorf eram meras extrapolações que não se sustentavam suficientemente em justificativas aceitáveis. Para McWhorter, se a teoria relativista fosse obedecida ao pé da letra, poderíamos criar formas de pensar divergentes que possuiriam, como efeito, cosmovisões particulares.
Contudo, McWhorter destaca que, em seus estudos, só leva em consideração a relação determinista entre língua e cultura, e não descarta que há importantes pontos de encontro entre ambas as correntes – e isso faz com que alguns pontos de vista sejam diferentes, embora o autor acredite que é mais relevante o grau em que a cultura faz com que a língua varie do que o contrário, ou seja, do que a hipótese sapir-whorfiana, que entende ser a língua que modifica a nossa cultura.
Dê-me relativismo linguístico e eu te darei ficção científica
Muito embora o filme de Villeneuve tenha feito dessa ideia o eixo central sobre o qual se sustenta toda a trama, a verdade é que o relativismo linguístico já está presente de uma forma ou de outra em muitas outras obras, especialmente na ficção científica. A realidade distópica imaginada pela escritora russa Ayn Rand em sua obra Anthem, por exemplo, trata de uma sociedade que eliminou o conceito de individualidade para transformar o povo em uma massa amorfa, em uma espécie de “colmeia”.
Os Despossuídos, romance da escritora estadunidense Ursula K. Le Guin, também trata do poder das palavras. O planeta anarquista em que vivem os protagonistas carece do conceito de propriedade e, portanto, e em consonância com as ideias whorfianas, os seres humanos não compreendem ideias como a possessividade.
Há, ainda, o clássico 1984, de George Orwell, que também merece ser mencionado – já que a novilíngua “condensava” ou simplesmente removia palavras da língua com fins repressivos. O conceito de novilíngua idealizado por Orwell se baseava, basicamente, em dois princípios: o primeiro no sentido de que se algo não faz parte da língua, não poderia ser pensado; e o segundo no sentido de que os bons livros de ficção científica se adiantam aos acontecimentos reais. Hoje em dia, por exemplo, as guerras já não têm mais mortos: têm “baixas” ou “efeitos colaterais”.
E voltando (ou chegando), enfim, em A Chegada…
Na imagem acima, retirada do filme de Villeneuve, a linguista Louise Banks tenta decifrar a mensagem extraterrestre escrita em uma língua que não concebe o tempo como algo linear. Nesse círculo pode haver uma mensagem breve, um romance ou um livro de contos. Os autores do texto, para descrevê-los de alguma forma, são criaturas extraterrestres de sete patas que não veem o tempo como nós o vemos. As palavras começo ou fim, passado ou futuro têm, para eles, um sentido relativo – eles já sabem o que vai acontecer, por exemplo, e como aconteceu o que está acontecendo neste exato momento. Em seu mundo não-linear, o livre arbítrio – se é que podemos chama-lo assim, pese o paradoxo – consiste em seguir um caminho já conhecido de antemão.
Não está claro, portanto, se no universo de A Chegada o ovo veio antes da galinha: se esses extraterrestres escrevem diferente de nós porque a sua percepção da realidade é diferente ou se veem o tempo de outra forma porque sua língua define o seu pensamento, como teoricamente aconteceria com a protagonista do filme. De qualquer modo, não se pode descartar a possibilidade de que nós, seres humanos, aos poucos estamos nos tornando heptapods. Talvez não pela língua que usamos, mas sim pelo formato em que veiculamos as nossas ideias: passamos da literatura oral para a escrita, de interpretar elementos visuais nas paredes do mundo para nos mantermos enclausurados nas telas dos nossos smartphones, e agora fazemos um esforço monumental para tentar entender o volume de informações lançadas segundo a segundo nas redes sociais e nos sentimos mareados com com os óculos de realidade virtual. No entanto, é bem provável que, com o passar do tempo, conseguiremos efetivamente lidar melhor com esses novos elementos, mas isso talvez mude para sempre a nossa forma de ver e nos relacionar com o mundo. E pode ser que, no fim das contas, nós mesmos sejamos nossos próprios alienígenas, hostis à nossa própria espécie.