Dentre os muitos exemplos que podem ser elencados em relação ao espaço que a ficção televisiva, no âmbito cinematográfico, tem conquistado nos últimos anos está a comprovação ocorrida no último Festival Internacional de Cinema de Toronto, em setembro deste ano, frente à estreia da terceira temporada de Black Mirror, que acabou se tornando uma de suas grandes atrações. O criador da série, Charlie Brooker, exibiu aos jornalistas, em tela de cinema e com toda a pompa de uma estreia, os dois primeiros do total de seis episódios da nova temporada, que hoje já está disponível para streaming a todos os assinantes da Netflix. Essa ação promocional em Toronto respondia tanto às expectativas gerais frente a uma das séries mais supreendendes dos últimos anos quanto ao fato de que, em sua terceira temporada, a produção televisiva britânica migrou sua produção física, quase que totalmente, para os Estados Unidos.
Os instintos mercadológicos predatórios da plataforma digital (que já superou amplamente, em relação ao número absoluto de assinantes, a HBO e já adentrou com força no mercado europeu) acabaram por acolher a extravagante criação de Brooker sob suas enormes asas para que juntos possam voar mais longe, embora não necessariamente mais alto, em sua crescente expansão internacional. E não é por acaso que o núcleo dramático da série caminhe justamente nessa direção, isto é, traçando os efeitos alienantes e destrutivos da globalização tecnológica nessa brecha da civilização em que provavelmente estamos vivendo, onde o Homem desaparece do outro lado do espelho (negro) da tecnologia ou encontra uma maneira de conviver com isso e com seus potenciais efeitos sem renunciar à sua natureza humana.
O último episódio da série havia sido White Christimas, um especial de Natal – em consonância com a tradição televisiva britânica – que foi ao ar em 2014, protagonizado por John Hamm, conhecido por ter interpretado a personagem Don Draper em Mad Men, e que voltava a colocar o espectador em uma infernal distopia tecnológica – mas, nesse caso, a partir de uma clonagem hiperrealista e virtual. Tratava-se de uma tentativa digna, de um episódio de transição e experimental sobre o potencial “estadunidense” da série, mas em todo caso ainda muito longe das maiores conquistas de Black Mirror até então – cujo auge poderia ser observado em episódios como The Entire History of Me, da primeira temporada, e em The Waldo Moment, da segunda. Fiel ao seu estilo não-linear, como se fosse uma antologia, cada episódio dessa terceira temporada funciona como um média-metragem autônomo de cerca de uma hora, por meio dos quais Brooker faz com que os pesadelos tecnológicos se tornem pesadelos sociais, construindo um diagnóstico da natureza humana no século XXI absolutamente escravizado pelas máquinas, fabulando e jogando de uma forma apocalíptica com as consequências fatais e assustadoras do nosso estilo de vida atual.
A terceira temporada de Black Mirror, que possui o dobro de episódios em relação às anteriores, se distingue obviamente pela “americanização” das formas e das tramas, que basicamente perdem sua singularidade britânica de outrora. Embora alguns episódios dessa nova produção, como o muito interessante Shut Up and Dance, ainda se passem em solo britânico, outros como Playtest unem ambas as culturas e sotaques (um turista americano em Londres), e esse intercâmbio cultural pode ser notado principalmente por meio do humor, dos traços realistas da estética narrativa e nas interpretações dos autores, mas sobretudo em elementos que já estão mais marcados e mais definidos no gênero, e que portanto perdem o efeito de surpresa que poderiam despertar. O efeito de “higienização” da imagem e do tom da narrativa que é produzido quando o cinema estadunidense se apropria de uma ficção-científica europeia e de seu criador – como em Solaris, de Andrei Tarkovsky, versus a versão de Soderbergh, por exemplo – se faz presente quase que de imediato nesta nova temporada.
Nosedive, o primeiro dos seis episódios, protagonizado por Bryce Dallas Howard, concebe um mundo não tão distante em que a popularidade das redes sociais se traduz diretamente em status social, de modo que a dinâmica entre o desejo e a necessidade de ser aceito e estimado pelos outros (cada interação social traz implícita consigo uma avaliação online, e por isso é quase obrigatório ser simpático) se transforma em uma cáustica e angustiante sátira em torno da identidade. Como acontece em outros episódios da série, nesse caso a premissa da narrativa é superior à história em si mesma, que se mostra fascinante (e assustadora) em relação à construção formal e à abordagem da trama, mas que patina de uma forma caricaturesca em seu desenvolvimento: a descida aos demônios de Lacie (Howard) em sua tentativa oportunista de adquirir relevância social se aproxima do retrato grotesco de uma sociedade elitizada e condenada à sociopatia cibernética.
De qualquer forma, todos os temas desenvolvidos e sobretudo as soluções formais do frio universo idealizado por Brooker são tão brilhantes – uma verdadeira corrida de ratos em uma roda sob o signo do totalitarismo, da hipocrisia e do “politicamente correto” – e mantém uma relação tão estreita com o mundo que estamos construindo, que Black Mirror demonstra novamente por que continua sendo tão relevante para a elaboração de um imaginário visual e moral para o nosso futuro imediato. Algo muito próximo disso ocorre no episódio Playtest, que explora, como de alguma forma já haviam feito os episódios Fifteen Million Merits, da primeira temporada, e White Bear, da segunda, os espelhos virtuais do mundo do entretenimento, desta vez centrando-se da indústria dos videogames. Playtest retrata um jovem estadunidense que viaja pelo mundo para fugir dos seus pesadelos (de sua mãe, principalmente) e que acaba participando, em Londres, de um teste experimental de um jogo de realidade virtual aumentada (até ser impossível de diferenciá-la da realidade física), que tem o objetivo justamente de que o jogador enfrente os seus medos mais profundos.
No entanto, a força e a tensão que vão se acumulando na primeira parte do episódio descamba muito facilmente para os elementos comuns de qualquer narrativa de terror, no espaço de uma mansão do século XIX repleta de fantasmas, e a história vai perdendo a capacidade de interessar e prender o espectador na medida em que avança. Shut Up and Dance, por sua vez, também propõe um jogo perverso, com consequências ainda mais trágicas, e também se aproxima de um subgênero claramente definido em inglês como survival – isto é, as histórias de sobrevivência -, mas sua singularidade e sua força são mais estimulantes. O pesadelo que é enfrentado pelo adolescente Kenny (Alex Lawther) quando ele se vê vitimado por uma armação online ao instalar um malware em seu celular modula a narrativa até o limite do pânico e da tensão máxima. O jovem é ameaçado e forçado a se aliar com um estranho para obedecer ordens criminosas de um grupo de desconhecidos, o que nos leva a um profundo e perpétuo questionamento moral.
Se Shut Up and Dance é, até o momento o episódio que mais me interessou (não necessariamente o mais fascinante), isso se dá provavelmente pelo tema que desenvolve (a espionagem cibernética e o controle social) e pela mudança de paradigma ético proposta pelo seu desfecho. Não é necessário contar mais do que o necessário, mas vale a pena destacar a alteração de perspectiva que propõe a resolução desse episódio – ou que ao menos se sugere, daí sua relevância. Se até certa altura nos sentimos plenamente identificados com a angústia do protagonista – que vive a age sob a ameaça de que um vídeo extremamente íntimo acabe sendo enviado para todos os seus contatos -, uma informação importantíssima, que até então não havia sido revelada (e que poderia ser verdadeira ou não), transforma necessariamente o nosso olhar sobre essa narrativa em uma história repleta de abusos sociais, agressões e vítimas.
De um modo geral, a série inquieta. Seus episódios – que podem ser vistos aleatoriamente por não possuírem um fio condutor e que poderiam, em conjunto, ser comparados a uma espécie de antologia -, inquietam pelo tom profético que assumem, pelas crítica que fazem e na medida em que propõem variações possíveis de um futuro que pode estar se aproximando. Também são uma análise certeira das relações, dos desejos, das obsessões e dos desvios emocionais da humanidade em função da tecnologia e da informação dessa sociedade em que vivemos. Uma sociedade que corre em direção a ilusões perenes que frequentemente se despedaçam (em sintonia com o espelho negro, que dá nome à série). Ou melhor: que “pedala”, como as personagens do segundo episódio da primeira temporada, em busca de uma fatia de liberdade que nos liberte da alienação e do regime de escravidão que vivemos. São, no fim das contas, possíveis retratos de um futuro que se conecta com o presente, com suas rotinas e com os anseios de cada um de nós, e que coloca ênfase no novo paradigma digital dessa era globalizada que modificou por completo a maneira por meio da qual nos relacionamos.
Black Mirror, que utiliza a ficção científica em uma abordagem claramente naturalista, fala em última análise principalmente sobre o real e o virtual, contrapondo-os. Do tempo como possibilidade e das simulações da vida em conjunto. De uma felicidade imposta, sempre (ou quase sempre) a partir de um olhar distópico. Da ansiedade e do desassossego que assolam as entranhas dessa “sociedade do bem-estar ocidental”. E essa nova temporada segue sendo provocativa – uma raridade, se levarmos em consideração o conjunto de séries de entretenimento atuais – ainda que descambe, em certos momentos, para um didatismo que não se observava nas temporadas anteriores. Trata-se, portanto, de uma distopia que nos provoca e nos introduz em um jogo de videogame chamado vida, nos obrigando fazer uma pergunta pergunta aparentemente banal, mas extremamente complicada de ser respondida: para onde vamos?