Os manuscritos medievais, em larga medida, continuam a ser um grande mistério para historiadores. Línguas desconhecidas, fragmentos misteriosos, temáticas obscuras, tudo isto agora pode chegar ao fim: uma técnica holandesa de raio x permite detectar e ler manuscritos medievais que, após a invenção da imprensa, foram reciclados e usados para reforçar as encadernações de livros.
É exatamente isto: uma revolucionária técnica de raios X desenvolvida por uma equipe de cientistas na universidade holandesa de Leiden levou já à descoberta e decifração de vários fragmentos de manuscritos com mais de mil anos que tinham sido usados para reforçar as encadernações de outras obras.
Em entrevista para o jornal The Observer, o especialista em literatura medieval Erik Kwakkel, um dos investigadores envolvidos neste projeto, que utiliza uma nova tecnologia, a Ma-xrf (sigla de macro x-ray fluorescence spectrometry), para ler as páginas ocultas sem destruir as encadernações, afirma: “É como uma caça ao tesouro, uma coisa realmente emociante”.
Desenvolvida por uma equipe liderada por Joris Dik, da Universidade de Teconologia de Delft, a Ma-xrf começou por ser utilizada para revelar camadas ocultas em telas de Rembrandt e de outros grandes pintores. Foi esta tecnologia que permitiu a descoberta, em 2011, de um até então desconhecido auto-retrato de Rembrandt, que apareceu, incompleto e já um tanto desvanecido, sob a superfície de outra pintura.
Mas as potencialidades desta técnica para a descoberta de manuscritos embutidos em encadernações são particularmente interessantes, porque o revolucionário scanner inventado por Dik permite não apenas detectar a sua existência, mas também lê-los, e isto sem danificar as lombadas dos livros.
A partir do século XV, e até ao século XVIII, era frequente os encadernadores cortarem e reciclarem livros medievais, escritos à mão, que a invenção da imprensa viera tornar obsoletos, para reforçar as lombadas. E alguns desses materiais eram já então antiquíssimos, como se demonstra pelos primeiros resultados do projecto da Universidade de Leiden, que encontrou numa das encadernações já radiografadas o fragmento de um manuscrito do século XII, que cita excertos de uma obra de Bede: um monge inglês e doutor da Igreja (é até hoje o único natural da Grã-Bretanha a quem foi concedido esse título) que viveu entre os séculos VII e VIII e redigiu uma célebre História Eclesiástica do Povo Inglês.
Erik Kwakkel calcula que uma em cada cinco encadernações dos primeiros tempos da imprensa contenha fragmentos de manuscritos medievais, que em alguns casos poderão ser mesmo o único vestígio que ocultamente sobreviveu de obras há muito dadas como irremediavelmente perdidas. Afirma: “Seria ótimo encontrarmos, por exemplo, um fragmento de alguma cópia muito antiga da Bíblia, que foi o texto mais importante durante a Idade Média”, observando que as grandes bibliotecas públicas, como a British Library ou a biblioteca da Universidade de Oxford, “têm milhares de obras com encadernações deste tipo”.
O principal senão da nova tecnologia é, por enquanto, a sua lentidão. Radiografar uma lombada pode levar 24 horas, reconhece Dik, cuja equipa está a tentar encontrar métodos mais expeditos. “Por agora, provamos que isto funciona”, diz o cientista.