[Postado por Dustin Illingworth em LitHub]
“Tudo está acabado para mim exceto a certeza de sua bondade. Eu não posso mais continuar atrapalhando a sua vida. Não acredito que outras duas pessoas pudessem ter sido mais felizes do que nós fomos.” Assim termina o forte bilhete suicida de Virginia Woolf, endereçado a seu marido, Leonard Woolf. É um documento impactante, assustadoramente belo, no qual uma decisão foi tomada para acabar com sua angústia. Já o li dezenas de vezes com fascinação, talvez até mesmo obsessão. Eu a imagino escrevendo estas últimas palavras com uma luz fraca em escrivaninha; andando deliberadamente rua abaixo, através da poeira; curvando-se para encher os bolsos de seu casaco com lisas pedras do rio; a fria e azulada água do rio Ouse tocando seus tornozelos. Mas sempre retorno ao conteúdo do bilhete: a impossível tarefa de uma escritora tentando explicar a si mesma – dizer adeus tanto a uma companhia quanto à existência – com palavras que, de repente, se tornam insensatas, rebeldes. “Veja você, não consigo sequer escrever isto”, lê-se em um determinado momento, uma frase que sempre me pareceu a parte mais trágica desta trágica carta – que a mente capaz de escrever Ao Farol pudesse recuar diante de uma articulação de palavras hesitante.
Esta, então, é a mórbida fascinação do bilhete de suicida literário: ele é, sem dúvida, o último trabalho escrito de um autor. Se acreditarmos que escritores possuem uma relação especial com a linguagem – uma relação na qual o incomunicável é, de algum modo, dito – podemos escusar nossa curiosidade pelo que estes momentos extremos de literatura podem revelar sobre o inviolável mistério da morte. Esta curiosidade não aparece (pelo menos não completamente) do romantismo, do enaltecimento de um artista condenado; ao contrário, acredito que ela surge a partir de uma preocupação genuinamente humana com a mais enigmática qualidade da vida – seu próprio fim – e a crença concomitante de que escritores, estes grandes narradores da vida, possam oferecer uma faísca de percepção de seu exato oposto: um vislumbre da escuridão. E mesmo se nós não elevássemos o bilhete de suicídio ao patamar de um romance, uma peça ou um poema – trabalhos meticulosos e duradouros de tempos de saúde – acredito que ainda assim vale a pena considerar de que modo o bilhete de suicídio se encaixa, ou complica, ou conclui, uma obra. Pode o suicídio, então, ser entendido como um gênero literário?
Existem, é claro, muitas maneiras pelas quais se pode deixar o mundo com palavras. Bilhetes de suicídio podem ser consoladores, sofridos, engraçados, ricamente poéticos – às vezes, tudo isso ao mesmo tempo. Eles podem ecoar o tom e o gesto do trabalho pelo qual o autor é conhecido, ou tomar uma forma completamente nova, nascida da pressão do fim. Alguns até desafiam descrições. Misao Fujimura, por exemplo, um adolescente estudante de filosofia e poeta que, tendo sido rejeitado pela mulher que amava, viajou para Kegon Falls, em Nikko, para cravar seu bilhete de suicídio no tronco de uma árvore antes de pular na queda d’água. Eis um pedaço traduzido:
Porque toda a verdade,
Toda a criação,
Todos os segredos de outrora
Podem ser ditos em um instante,
E então eles não são mais nada.
Aí está algo extraordinariamente deliberado (e dolorosamente bonito) sobre sua decisão, particularmente em alguém tão novo como Fujimura, que tinha apenas 17 anos. Se pensarmos a carta de suicídio como algo paradoxalmente vivo, um conjunto de palavras ecoando no futuro, podemos ter nele um documento bastante literário: o desespero jovem preservado no tronco de uma árvore.
Cartas de suicídio são também, necessariamente, registros históricos, e seus conteúdos podem servir como subtexto para pesadelos históricos, ou anotações sobre textos existenciais da própria história: uma espécie de marginalia humana. O romancista Stefan Zweig, forçado a se exilar pelos nazistas, sofreu pela perda do humanista multiculturalismo de Vianna, e teve uma overdose de barbitúricos junto com sua esposa em sua casa em Petrópolis, no Rio de Janeiro. Eles foram encontrados na cama, de mãos dadas. A carta que ele deixou é tanto o indiciamento de um século falido como um retrato de um exílio vivenciado intensamente:
Mas para começar tudo de novo um homem de 60 anos de idade requer poderes especiais, e meu poder já foi gasto após vagas sem-teto por anos. Eu prefiro acabar com a minha vida no momento certo, correto, como um homem cujo trabalho cultural sempre foi puramente feliz e livre – o que se pode ter de mais precioso nesta terra.
Após o grande poeta John Berryman pular da ponte da Washington Avenue em direção ao gelo do rio Mississippi (ele acenou para um carro que passava, antes), sua esposa Kate encontrou uma carta amassada no lixo, escrita na parte de trás de um envelope. Ela dizia:
Oh minha amada Kate, você fez tudo o que pôde.
Estou desempregado & sou um incômodo.
Me perdoe, case novamente, seja feliz.
De modo parecido, o romancista Arthur Koestler deixou uma carta que continha uma clara declaração de seu adoecimento, junto com este adendo:
Gostaria que meus amigos soubessem que estou deixando sua companhia num pacífico estado de espírito, com alguma esperança de uma vida-após-a-morte-personalizada para além do espaço, do tempo, da matéria e dos limites da compreensão. Este “sentimento oceânico” frequentemente me sustentou em momentos de dificuldade, e assim o faz agora, enquanto escrevo esta carta.
Se estas despedidas dispõe de certa preocupação pragmática para com a vida deixada para trás – razões, avisos, desejos para o futuro do qual eles não participarão – há também cartas de suicídio que me parecem performativas e estéticas. Isto é, elas não estão interessadas em falar das motivações por trás dos atos, nem articular esperanças para o mundo que ficou para trás; ao contrário, elas pautam-se num modo de ser ambíguo, deixando cair o véu do lirismo enquanto desaparecem por trás dele. Estou pensando, por exemplo, em Robert E. Howard (Todos se foram – tudo pronto, então me erga no fogo/O banquete chegou ao fim, e as lâmpadas se esgotaram) – frases que foram retiradas de Viola Garvin – ou o poeta russo Sergei Esenin (Tenhamos nenhuma tristeza – sobrancelhas franzidas/Não há nada novo em morrer agora). Há, é claro, grande sofrimento nestas cartas, mas ele se torna abstrato em forma de uma poesia na qual o sofrimento individual é absorvido por uma condição universal, colocada em uma tradição poética maior. Deixar para trás um poema é talvez um modo de dizer que a arte, em sua indefinição, é a melhor maneira de deixar algo tão enigmático e estético quanto a existência.
Há, também, grandes cartas perdidas pelas quais a biógrafa em mim anseia, mas às quais sei que não poderei reclamar. A mãe de John Kennedy Yoole, autor de Uma Confraria de Tolos, destruiu sua carta suicida após lê-la, o que causou relatos conflituosos acerca de seu conteúdo. A carta que David Foster Wallace deixou para sua esposa – privacidade que eu nunca violaria – me deixa com enorme curiosidade. Hart Crane, um dos meus poetas favoritos, se absteve de escrever uma carta, apenas gritando “Adeus, todo mundo!” enquanto pulava do deck de um navio. O que sobrou do artista nestas cartas (ou falta delas), o que cada um escolheu expressas em suas comunicações finais continua sendo uma fonte de mistério para mim. Eu habito totalmente minhas obsessões – livros mais do que qualquer outra coisa – e estas obras finais me atingem como algo parecido como páginas arrancadas do final de um romance. Me pergunto que segredos elas contêm; me pergunto sobre seus silêncios; me pergunto sobre a compulsão humana em explicar ou adornar o fim de alguém.
Foi difícil escrever este artigo porque eu podia ouvir um coro de (válidas) reclamações: que cartas de suicídio de terceiros não são feitas para que eu as leia; que eu sou fetichista; que estas cartas não são literatura, mas uma tragédia. Ainda que eu compreenda estas preocupações, eu não as compartilho, pelo menos não inteiramente. Me parece que ler The Dream Songs é uma intimidade maior do que conhecer os conteúdos do envelope amassado de Barryman no lixo; que Virginia Woolf se desnudou mais em As Ondas do que em sua carta final em 1941. Livros são eles próprios pequenas mortes, experiências de mudança e limite, suicídios dos quais podemos ou não retornar transformados. Isto, eu acredito, é parte de seu tremendo poder. Não é de se espantar, então, que existam aqueles de nós que leem e retornam à literatura do suicídio com interesse, e sempre com um senso de gratidão, uma afirmação de coragem. Não importa quantas vezes eu as leia, ainda parece incrível que se tenha colocado palavras no vazio, que se tenha dado vestimenta até mesmo à data de validade.
Imagem da capa: “Bedford and the River Great Ouse,” J.M.W. Turner, 1829
[Matéria original em: http://lithub.com/the-suicide-note-as-literary-genre/]
[Traduzido por Luisa Bertrami D’Angelo para o NotaTerapia]