Fernando Pessoa nem sempre é o poeta ao qual recorremos quando estamos delirando de paixão, por isso, causa certo estranhamento ao ver em uma capa de livro o título Cartas de Amor acompanhado do nome do poeta português. No entanto, essas cartas compõem mais uma peça do vasto mosaico pessoano. Entre 1919 e 1931, Fernando Pessoa trocou correspondências com Ofélia Queiroz, relação que pode ser dividida em duas fases: a primeira, de 1919 a 1920, e a segunda, de 1929 a 1931. As numerosas cartas amorosas chegam agora ao público em nova organização de Jerónimo Pizarro, publicada pela editora Tinta da China.
O casal conheceu-se no escritório “Félix, Valladas & Freitas”, onde o poeta era correspondente comercial e Ofélia datilógrafa. Ele, com 32, ela com 19 anos. Nessa época, Fernando já tinha seus desdobramentos poéticos – Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro — além da empreitada com o modernismo português, com a revista Orpheu. Procurava, então, um meio de se estabilizar financeiramente. Nesse meio-tempo, mudava de residência, passava horas em café escrevendo cartas e poemas. Ofélia, por sua vez, era uma jovem burguesa lisboeta, irmã caçula de oito irmãos e uma mulher independente para os costumes da época. Falava francês e havia arranjado emprego por meios próprios.
O namoro começou por meio de cartas. O poeta pediu para ficar a sós com a jovem. Em um dia sem luz, Fernando entra no gabinete de Ofélia com um candeeiro e o pousa sobre a mesa. A moça, já de casaco e prestes a ir embora, inesperadamente o escuta recitar Hamlet para declarar-se:
“Oh, querida Ofélia! Meço mal os meus versos; careço de arte para medir meus suspiros; mas amo-te em extremo. Oh! até ao último extremo, acredita!”.
O relacionamento começa, assim, sob o signo da tragédia shakespeariana. O nome fatídico da moça já nos dava pistas de que não haveria um final feliz para o casal. Ofélia, mesmo perturbada e em estado de perplexidade, corresponde ao beijo apaixonado de Fernando. Apesar da declaração teatral, nos dias seguintes, o poeta ignora o ocorrido. Ofélia, então, escreve-lhe uma carta em busca de explicações, dando início à troca frenética de correspondências nesta primeira fase.
“Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as cousas, nem trata os outros como réus que é preciso enlatar.” Trecho da carta de Fernando Pessoa a Ofélia Queiroz
Uma das primeiras imagens do livro é um desenho — ou melhor, um plano estratégico — de Pessoa para passear com Ofélia pelas ruas de Lisboa. Ele calcula, inclusive, os trajetos mais longos, a fim de passarem mais tempo juntos. Você deve estar se perguntando: por que tanto planejamento para um simples passeio romântico? O casal até tinha um compromisso, mas era segredo, por causa do pai de Ofélia. Além disso, Fernando pedia discrição quanto ao assunto. Assim, tudo era milimetricamente planejado nesse romance: das estratégias de passeio às perguntas feitas aos astros.
Se Fernando Pessoa desejava discrição, Ofélia ansiava por um compromisso sólido. Em suas cartas, falava em noivado e casamento, enquanto o poeta tratava desses temas de modo vago e evasivo. Ofélia sonhava com um lar; Pessoa, ao contrário, “[…] procurava um maior isolamento […]”. Cada um alimentava uma expectativa distinta, cujos planos jamais se encaixaram. Era apenas uma questão de tempo para que o amor entrasse na fase de esfriamento, marcada por encontros e desencontros
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Outro ponto interessante a se destacar nas cartas é a participação do heterônimo Álvaro de Campos na relação. Uma intromissão lenta e progressiva por parte do poeta engenheiro. Eles formaram uma espécie de trisal, no qual um participante só existe no universo de Pessoa. Campos seria, segundo Leyla Perrone-Moisés, “o declaradamente, o homossexual da coterie, e que, portanto, só podia detestar Ofélia.” A moça entra na brincadeira artística/ literária de Pessoa, a ponto de tratar Álvaro de Campos como uma pessoa a qual, de fato, existe.
Se o Bébézinho quiser estar à janela, vê o Nininho passar. Se não quiser, não o vê (É autor desta última frase o meu querido amigo Álvaro de Campos)
Apesar de terem reatado o namoro em 1929, o relacionamento, em alguma hora entraria em declínio. O amor escrito em papéis é controlado, intelectualmente administrável e a prioridade máxima de Pessoa era a sua arte. A recusa ao casamento, o afastamento gradual e a retomada breve anos depois evidenciam que o poeta via a relação como uma ameaça à sua condição de criação, uma fissura na solidão necessária ao pensamento. Foram nos últimos anos de namoro, inclusive, que a escrita do Livro do Desassossego estava a todo vapor.
De resto, a minha vida gira em torno da minha obra literária — boa ou má, que seja, ou possa ser. Tudo mais na vida tem para mim um interesse secundário: há coisas, naturalmente, que estimaria ter, outras que tanto faz que venham ou não venham. É preciso que todos que lidam comigo se convençam de que sou assim, e que exigir-me os sentimentos, aliás muito dignos, de um homem vulgar e banal, é como exigir-me que tenha olhos azuis e cabelo louro. E estar a tratar-me como se eu fosse outra pessoa não é a melhor maneira de manter a minha afeição.
Antonio Tabucchi escreve que Fernando Pessoa escolheu a literatura porque não podia escolher o amor. A minha hipótese, talvez, seja que, enquanto Ofélia ansiava por um lar e por tudo o que vem junto dele, Pessoa precisava apenas de um quarto, papéis, caneta e um baú para guardar sua produção poética. Isso bastava.
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