“Luta de Classes”(2025) – Spike Lee reiventa clássico de Kurosawa para o século XXI

No final de Céu e Inferno, clássico de Akira Kurosawa refilmado por Spike Lee em Luta de Classes, Gondo (Toshiro Mifune) fica frente a frente com seu algoz, o sequestrador interpretado por Tsutomu Yamazaki, recém preso. Neste momento, o jovem revela todo seu ressentimento de classe pelo magnata, tendo um profundo surto emocional, e é retirado do recinto. Gondo fica sozinho, encarando seu reflexo no vidro que os separava. Uma cortina de aço desce, e o homem fica na escuridão e, de certa forma, aprisionado também.

É uma conclusão que oferece poucos confortos, e condizente com o cenário apresentado até então, de um Japão marcado por uma profunda desigualdade, onde os que estão embaixo parecem condenados a sempre admirarem os que estão no alto — literalmente no caso do lar de Gondo, uma casa no topo de uma colina — sem chances reais de ascensão.

Uma readaptação não precisa seguir os pilares da obra original, mas não deixa de ser curioso que um trabalho cuja temática permanece atual tenha recebido um tratamento tão sanitizado quanto o visto em Luta de Classes. Ainda mais pelas mãos de um cineasta tão ácido quanto Lee, que nunca fugiu de confrontar os aspectos mais desagradáveis da sociedade americana.

Mas o cineasta parece querer mais propor certa celebração do que uma discussão crítica dessa vez. Faço novamente uma comparação com a obra dos anos 60, mas dessa vez do início. Enquanto Kurosawa abria sua obra olhando para baixo, para as casas humildes que, da perspectiva de Gondo, eram somente paisagens, Lee começa olhando para cima, admirando os arranha-céus de Nova York, especialmente aquele ocupado pelo seu protagonista, o figurão do mundo da música, David King (Denzel Washington).

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A premissa é a mesma: Enquanto o empresário busca executar uma manobra financeira para reaver o controle da sua empresa, o filho de um grande amigo e funcionário, Paul (Jeffrey Wright) é sequestrado, com os sequestradores erroneamente acreditando que se trata do filho do próprio David. Pouco importa, os criminosos querem o dinheiro mesmo assim, algo que, no momento, o protagonista possui pouco. Irá arriscar ele seu futuro financeiro para resgatar alguém a quem não deve nada?

Uma série de tensões emanam disso. David com si mesmo, ele com seu filho, e dele com Paul, e deste, ao menos um pouco, com a polícia, que desconfia do mesmo diante do seu passado criminoso. Mas a jornada principal é de David, figura que, curiosamente, Lee e o roteiro de Alan Fox não desejam perturbar muito intimamente. Mesmo em seus momentos mais mesquinhos, Luta de Classes parece sempre querer reforçar que seu personagem tem razão. Durante uma discussão com Paul acerca do pagamento do resgate, David elenca uma série de atividades que o fez chegar onde está, e o quanto as pessoas pedem dele, simbolizado por uma série de pastas que ele empilha em sua mesa. Cada nova pasta, um corte, enfatizando o ato, seu peso. É o clichê “O empresário corre todos os riscos!” em forma audiovisual. 

A narrativa é recheada de momentos assim, onde os eventos perigam revelar algum aspecto mais desconfortável para o protagonista e sua posição, mas que só servem para reafirmá-lo. A jornada para fora do seu apartamento privilegiado só reforça sua estatura, reconectando-o com suas origens e preparando-o para a próxima fase da sua vida.

À sua maneira, Luta de Classes carrega o comentário de classe do original, mas por outro viés. Se nos anos 60, a situação tirava os personagens de seus eixos, questionando suas posições na sociedade, aqui impera a tranquilidade. David continuará rico, obrigado, toda a atribulação só mostrando que ele atingiu o topo por merecimento e que os jovens, tanto seu filho quanto o sequestrador, ainda têm  muito a aprender com ele. Uma conclusão segura e pacífica. Parece que o Lee de Faça a Coisa Certa, que colocou o próprio personagem como estopim de uma revolta urbana, está mais interessado em manter as coisas como estão. A revolta deve mesmo ser coisa de jovem.

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