A escrita do insólito por María Fernanda Ampuero: literatura de terror feminina latino-americana 

Rinha de Galos (2021) e Sacrifícios Humanos (2022), de María Fernanda Ampuero, publicados pela Editora Moinhos, antecipa a atmosfera literária inflamada e provocativa que ela cria

A literatura de mulheres latinas nos últimos anos vêm ganhando um braço forte que se firma pela violência e assombro. Perscrutando o íntimo que se constroi através das dores, dos desentendimentos e perigos em ser mulher na América Latina, esses livros são capazes de cavar no terror o cerne da questão. 

Acredito que neste gênero – e eu o chamo assim livremente – os contos são ponta de lança. Com o aspecto de suspense tradicional dos contos, há, também, em algumas autoras como Ojeda referência clara às narrativas tradicionais latino-americanas pela presença forte do místico e da oralidade. Mas, além disso, na estrutura limitada do conto há espaço para um tratamento cru quanto à violência e, nesta carne, uma inquietação, uma dor. 

María Fernanda Ampuero é uma referência nesta categoria literária. Natural do Equador, a escritora tem duas obras publicadas no Brasil: Rinha de Galos (2021) e Sacrifícios Humanos (2022), ambos pela Editora Moinhos e ambos com um vermelho vivo colorindo as capas que antecipa a atmosfera literária inflamada e provocativa que ela cria. 

Rinhas de Galo e Sacrifícios Humanos: a escrita de María Fernanda Ampuero

Rinha de Galos se inicia com um conto que inspirou o nome da obra. Na história, uma menina acostumada com a violência dos homens desde a infância é sequestrada e se torna objeto de leilão. Enquanto isso ocorre, ela narra certos acontecimentos de sua infância que parecem terem a tornado mais forte, ou melhor dizendo: resistente. 

Quando menina, seu pai a levava às rinhas de galos que frequentava. Lá, homens esquisitos a olhavam, a assediavam, a abusavam, e o pai, não menos abusivo,  a chamava de mulherzinha medrosa enquanto a colocava para recolher os restos mortais dos galos que nenhum deles tinha coragem de tocar. 

Certa noite, a barriga de um galo estourou enquanto eu o carregava nos braços como se fosse uma boneca, e descobri que aqueles homens tão machos que gritava, e atiçaram para que um galo rasgasse o outro de cima a baixo tinham nojo da merda, do sangue e das vísceras do galo morto. Assim, eu passava essa mistura nas mãos, nos joelhos e no rosto, e eles pararam de me importunar com beijos e outras idiotices.
Diziam ao meu pai:
– Sua filha é um monstro

Seu contato recorrente com o sangue, com a morte e com homens perigosos enquanto acompanhava o pai até as rinhas de galos criou nela uma carapuça que a impediu de chorar enquanto sentia um pano sujo cobrindo sua cabeça e os berros de uma multidão bêbada. Por ter sido uma garota vítima de abusos e olhares sujos, ela passou a entender bem sobre o que desagradava aquelas pessoas que a machucavam e, por isso, ela sai de lá com vida após gritar e se sujar com excrementos. 

A narrativa emprega um tom ao mesmo tempo jocoso em relação à natureza masculina, como também apavorado. E a costura entre acontecimentos da infância da narradora com o fatídico dia do sequestro tem as violências como linha, unindo pela ferida da agulha dois episódios que, no fim, não parece que terão um fim: o retalho final é a noção de que essa não foi a primeira vez e não seria a última.  

Em contos curtos, ao longo de toda obra, Ampuero debate questões de abuso e violência, mantendo uma sobriedade inquietante, de revirar o estômago. Talvez justamente pelas narrativas extremamente curtas, o choque permaneça do início ao fim do livro, dando empurrões firmes no leitor através da linguagem seca e intrigante, daqueles que te fazem se ajeitar na poltrona ou na cama para entender se aquilo que lê é real, para digerir o infesto.

Leia também: “O Céu da Selva”: cubana Elaine Vilar Madruga retrata condição feminina através da degradação que assola a América Latina

Originalmente publicado 3 anos depois, Sacrifícios Humanos parece ter maturado o pernicioso da literatura de Maria Fernanda Ampuero. Com textos mais robustos e de natureza acre, o segundo livro de contos abre com Biografia, uma história digna de filme de terror em que uma imigrante se oferece para escrever a história de um homem desconhecido que se revela, não surpreendentemente, atormentado e maldoso. 

No entanto, acredito que o conto que mais espelha o que tento dizer sobre a continência arrebatadora da obra e o fundo acre das narrativas é Assobio

Dotado de uma partícula específica de estranhamento, o conto inicia com a noção apresentada pela narradora de que sua mãe nunca a havia contado uma história de terror, mas somente histórias alegres de sua infância, algo que a incomodava profundamente.

tinha certeza de que o maligno existia, e, como existia, mamãe deve tê-lo conhecido. 

Um dia, após ter visto sua recém-adotada cadelinha morrer em agonia por comer veneno de rato e chorar por uma noite inteira, a mãe da protagonista, para acalmá-la, conta uma história de terror sobre “aquele que assobia”. Apesar de soar inoportuno, até faz sentido essa história vir à tona, pois se inicia com uma fatalidade ocorrida com filhotinhos da cadela da infância de sua mãe, a Loba. Após perder uma ninhada de 8 filhotes para uma praga, a mãe da narradora resolveu levar sua cachorrinha por um tempo para viver com sua avó no campo. Lá, ela vivia longe do ambiente tóxico de sua família cercado de irmãos que eram mimados pela mãe que a tratava mal. 

No campo, com sua avó, a mãe da narradora chegou a viver uma vida repleta de liberdade e autossuficiência: uma fazenda em um pequeno pedaço de terra em que viviam e trabalhavam apenas duas mulheres. No entanto, o medo “daquele que assobia” rondava esse momento de maneira presente, sua avó a alertava seriamente que se ouvisse um assobio, mesmo que se soasse como assobio de seu pai, seus irmãos ou de um namorado, que não fosse para perto ou o atendesse; pois ele fazia coisas ruins com garotas como ela.  

Em dado momento, ela precisa voltar para sua casa a mando de seu pai, deixando a vida livre da fazenda para trás. De volta à cidade, ela retoma ao pesadelo com sua mãe e seus irmãos, mas começa a namorar um garoto pelo qual se apaixona perdidamente, até ele propor que eles fizessem sexo e ela negar, resultando em um abandono imediato. Na mesma noite do ocorrido, ela ouviu um assobio como o dele e, pensando ser um pedido de desculpas, resolveu olhar pela janela, mas não viu nada. Esta é a história que ela conta para sua filha, mas o conto não termina aí. 

Anos mais tarde, a situação no ambiente familiar dessa narradora piora. Seu pai, que conquistou sua mãe logo após o término com aquele namoradinho da história, passa a beber todos os dias e chegar em casa sujo de batom dizendo que havia saído com amigos. 

A casa inteira se encheu de algo tóxico, um aterro sanitário. O comportamento de meu pai consumia todo o oxigênio disponível e nós duas respirávamos ofegantes, coladas na parede, nos cantos, pequenas doses de algo mortal.

Este homem foi adoecendo e levando quem estava ao seu redor para a mesma atmosfera. No entanto, sua mãe continuou cuidando dele quando um câncer o devastou, e sua respiração fazia-se penada e produzia um som particular: um assobio ininterrupto de perfurar os ouvidos: 

Eu não quis formular as perguntas que fariam minha mãe se envergonhar de toda a sua vida, de dar o lado direito da cama e o melhor pedaço de peru – a carne branca em pequenos filés – ao seu carrasco, da confusão de seu amor-próprio, de sua condição de mulher miserável e prisioneira, de seu silêncio por medo de que meu pai a abandonasse, um silêncio brutal, como uma enorme mão de carrasco que cobre seu nariz e a boca enquanto assobia. 

Sacrifícios Humanos constroi nos 12 contos que compõem o livro atmosferas mais distintas, porém, ainda assim, ligadas entre si pelo fio da perversidade e do medo. Com uma proposta de histórias mais longas e certa “permissão” mais clara para ousar, sair do cotidiano, a densidade desses contos se inflama nas mãos de María Fernanda Ampuero.

Por mais distantes, em termos de estrutura e enredo, que essas histórias apresentadas possam soar, o elemento comum a elas, tanto em Rinha de Galos, quanto em Sacrifícios Humanos, é este masculino estranho, que vive de forma parasitária ou insípida, mas sempre a perturbar, criando uma película turva do pernicioso nas histórias, uma sensação de que nossas vidas estão infestadas por esse mal. 

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