“…ele é chamado de bêbado”: O alcoolismo representado em Journey’s End de R.C. Sherriff.

Journey’s End, um clássico anti-guerra

“Para esquecer, seu pequeno idiota, para esquecer”. É assim que o Capitão Stanhope, personagem principal da peça Journey’s End, explica para Jimmy Raleigh, um amigo de infância, o motivo de sua embriaguez constante. A cena é a culminação de quatro dias de imensa tensão em um abrigo subterrâneo nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, durante os quais a estabilidade e compostura do capitão se deterioram rapidamente enquanto sua vida pessoal ameaça ser destruída por seu vício em álcool, que ele usa para enfrentar os horrores da Grande Guerra, e seus homens morrem em uma missão suicida que ele foi obrigado a organizar.

“Journey’s End” – O Fim da Jornada ou O Fim do Dia, embora no Brasil tenha sido traduzida também como A Última Jornada – é uma peça britânica, encenada pela primeira vez em 1928, escrita por R. C. Sherriff. A obra é um clássico da ficção anti-guerra, e um dos maiores expoentes da ficção sobre a Primeira Guerra Mundial, tendo sido a régua contra a qual outros trabalhos do gênero foram medidos ao longo do século XX.

Na produção original, o protagonista, Stanhope, foi interpretado pelo célebre Lawrence Olivier. Um sucesso instantâneo que se tornou um clássico imediato, Journey’s End já teve inúmeras produções teatrais, um filme (a magnífica adaptação de 2017) com um elenco de atores criticamente aclamados – Sam Claflin no papel de Stanhope, Asa Butterfield como Raleigh, Paul Bettany como Osborne, e Tom Sturrige e Stephen Graham em papéis coadjuvantes –, uma novelização, algumas versões para a TV, e é leitura obrigatória em boa parte dos currículos escolares ingleses. A revival da peça na Broadway, em 2007, ganhou o Tony Award de Melhor Revival de uma Peça, e o Drama Desk Award por Revival Excepcional de uma Peça.

A peça retrata de forma contundente as experiências de soldados nas trincheiras da Frente Ocidental, explorando os efeitos psicológicos devastadores do conflito. O Capitão Stanhope, protagonista da história, luta contra o alcoolismo enquanto tenta manter sua sanidade e liderança em meio aos horrores da guerra de trincheiras. A obra tem um impacto duradouro na literatura e no teatro britânicos, oferecendo uma visão crua e realista do chamado “shell shock”, hoje conhecido como Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). Através de diálogos intensos e um cenário claustrofóbico, da pequena quantidade de personagens e do espaço de tempo curto, “Journey’s End” examina como o trauma de guerra pode levar ao abuso de substâncias como mecanismo de enfrentamento, enquanto aborda, também, temas como camaradagem, hierarquia militar e as pressões psicológicas enfrentadas pelos soldados durante operações e a constante ameaça de ataques inimigos, proporcionando uma análise profunda da condição humana em tempos de guerra.

Journey’s End não está disponível para leitura em português. Em inglês, foi publicada pela Penguin Classics, e tem cerca de 90 páginas, a maior parte de diálogo. O filme de 2017, uma adaptação bastante fiel, porém, pode ser assistida no Amazon Prime Video sob o título de “A Última Jornada”. Assista ao trailer:

Quem foi R. C. Sherriff?

Robert Cedric Sherriff (1896-1975) foi um escritor e roteirista inglês que, dos anos 1920 aos anos 1960, escreveu inúmeras peças, romances e roteiros de cinema, tendo sido nomeado para um Oscar e dois prêmios BAFTA. Seu trabalho mais famoso foi a peça Journey’s End, baseada em suas próprias experiências como um oficial do exército inglês na Primeira Guerra Mundial.

Sherriff tinha 18 anos quando a Primeira Guerra Mundial começou em 1914, e tinha acabado de sair da escola. Ele serviu como um oficial no Nono Batalhão do Regimento de East Surrey, participando de batalhas célebres, como Vimy Ridge e Loos. Ele sofreu sérios ferimentos na batalha de Passchendaele, na região de Ypres, em 1917, e também foi vítima de estresse de combate e nevralgia. Muitas de suas experiências moldariam os personagens de Journey’s End – ambos os seus protagonistas, Stanhope e Raleigh, se juntam ao exército aos 18 anos, logo após sair da escola, ambos são oficiais, e Stanhope é um herói da batalha de Vimy Ridge. Tanto Stanhope quanto Hibbert sofrem de nevralgia e estresse de combate.

O teatro britânico no pós-guerra foi marcado por obras que exploravam os traumas da Primeira Guerra Mundial. “Journey’s End” surgiu nesse contexto, tornando-se uma das peças mais influentes sobre o conflito. Escrita por Sherriff em 1927, a obra se destaca por sua representação realista da vida nas trincheiras e dos efeitos psicológicos da guerra nos soldados. A princípio, houve relutância da parte de muitos produtores em colocar a peça num palco; nas palavras do próprio Sherriff, “todo produtor em Londres a recusou. Eles diziam que as pessoas não queriam peças sobre guerra […]. ‘Como posso apresentar uma peça sem uma protagonista feminina?’, um deles perguntou, reclamando”. No final dos anos 1960, Sherriff publicou uma autobiografia, que intitulou “Sem Protagonista Feminina”.  

Journey’s End” teve uma recepção crítica extremamente positiva em sua estreia em 1928. A peça foi elogiada por sua representação não romantizada da realidade da guerra e seu poder emocional – George Bernard Shaw a descreveu como “um [corretivo] útil para a concepção romântica da guerra”, enquanto, nas palavras de James Curtis, ela “conseguiu reunir, no momento certo e da maneira certa, as impressões de uma geração inteira de homens que estiveram na guerra e que achavam impossível, através de palavras ou ações, expressar adequadamente para seus amigos e famílias o que as trincheiras tinham sido”.

O público respondeu com ovações de pé, e figuras proeminentes como Winston Churchill a consideraram brilhante. A peça inspirou inúmeros outros trabalhos no mesmo espírito: o dramaturgo, compositor, diretor, ator e cantor Sir Noël Peirce Coward (mais conhecido simplesmente como Noël Coward), que interpretou o papel de Stanhope brevemente em uma turnê no Extremo Oriente – e que considerou sua própria atuação ruim, sentenciando que sua audiência tinha “educadamente me assistido pegar um grande papel em uma grande peça e jogá-lo num beco” – disse que ele foi “fortemente afetado pela força da peça” e que ela o tinha inspirado a escrever sua própria “pequena e raivosa vilificação da guerra” – a peça Post-Mortem, publicada em 1930, que ele considerou digna de publicação, mas não de ser produzida (embora eventualmente o tenha sido).

A tragédia de dois soldados (contém spoilers):

Journey’s End conta a história do Capitão Dennis Stanhope, um jovem de apenas 21 anos que é um herói de guerra. Ele alistou-se para lutar na Grande Guerra ainda com 18 anos, nos meses iniciais do conflito, e três anos de serviço depois, tem o comando de uma companhia e uma condecoração militar por seu heroísmo na batalha de Vimy-Ridge. Stanhope é extremamente competente e muito popular entre seus homens, que o reconhecem como um líder sério e capaz, apesar de sua rigidez. Há, entretanto, um porém: para se manter são em meio aos horrores da vida nas trincheiras, o rapaz se tornou alcoólatra.

Isso é conhecido por seus homens, e também famoso entre oficiais de outras companhias, que reconhecem a imensa capacidade de Stanhope, mas o evitam em função de sua famosa irascibilidade (um dos primeiros sinais de abstinência) quando não está embriagado. Apesar disso, os homens incentivam Stanhope a beber, assombrados por sua capacidade de consumir álcool. Stanhope tem um bom relacionamento com os soldados de maneira geral, mas o único que de fato considera um amigo é o Lugar-Tenente Osborne, um homem com pelo menos o dobro de sua idade, mas que o adora e defende incansavelmente, sempre evidenciando sua habilidade e assegurando a todos que seguiria seu capitão até o inferno.

O grande conflito da peça se inicia quando um novo oficial subordinado é comissionado para a companhia de Stanhope: o jovem James Raleigh, de apenas dezoito anos, que acabou de sair da Academia Militar e nunca viu um dia de combate. Raleigh é um menino bom e correto, ansioso para lutar e, acima de tudo, para servir sob o comando de Stanhope – seu melhor amigo de infância e namorado da irmã de Raleigh, ora chamada de Madge, ora de Margaret.

Raleigh mal pode esperar para reencontrar Stanhope, mas o capitão fica horrorizado ao encontrar o rapaz em suas Companhia. A presença de Raleigh, em sua cabeça, tem o potencial de destruir sua vida. Até então, sua família, seus amigos e Madge / Margaret – de quem, de acordo com Raleigh, Stanhope é praticamente noivo – não têm a menor ideia de sua condição. Stanhope sequer voltava para casa em suas licenças, disposto a tudo para esconder seu alcoolismo daqueles que o conhecem, e a presença de Raleigh – que, nas palavras do próprio Stanhope, o adorava como a um herói desde a infância – destruirá seus planos.

Ao longo de seis dias, Stanhope se encontra cada vez mais estressado enquanto se torna claro que a esperada Ofensiva de Primavera alemã – que viria a ser um dos mais mortíferos períodos da Primeira Guerra Mundial – chegará ainda naquela semana, com sua companhia bem no meio da ação, e o capitão recebe a ordem de enviar alguns de seus homens em uma missão praticamente suicida para sequestrar um soldado alemão na trincheira inimiga, na tentativa de conseguir informação.

Nesse meio tempo, ele se torna cada vez mais hostil a Raleigh e aos outros oficiais sob seu comando de maneira geral. Sua condição piora consideravelmente com a morte de Osborne no ataque em questão e, assim, a perda do único homem com quem ele era sincero. Nessa ocasião, ele e Raleigh têm uma enorme discussão, na qual Stanhope eventualmente grita que ele bebe para esquecer dos horrores que vê, chocando Raleigh.

No final da peça, a ofensiva alemã é lançada, e a companhia de Stanhope está na linha de frente. Nos primeiros minutos, Raleigh é atingido fatalmente por um estilhaço. Desesperado, Stanhope coloca o menino em uma das camas do abrigo e fica com ele, confortando-o e segurando sua mão até que ele morra. Pela primeira vez na peça, ele chama o amigo pelo primeiro nome – seu apelido, Jimmy. Stanhope chora copiosamente, mas é chamado de volta para a batalha. A peça termina sem deixar claro se Stanhope sobreviveu ou não ao ataque; tudo o que se sabe, historicamente, é que a batalha em questão foi perdida pelas forças dos Aliados, e o exército britânico foi forçado a abandonar aquelas posições e recuar.

O contexto histórico de Journey’s End

A Primeira Guerra Mundial, um conflito global que durou de 1914 a 1918, teve um impacto profundo na sociedade britânica. O conflito foi caracterizado pela guerra de trincheiras e o uso de artilharia, metralhadoras e armas químicas pela primeira vez, sendo considerada a primeira guerra moderna, e causando milhões de mortes e feridos, tanto militares quanto civis. As origens da Grande Guerra remontam às disputas entre as potências europeias por mercados e recursos, levando a uma corrida armamentista. O assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando em Sarajevo foi o estopim que desencadeou a guerra, embora não possa, em nenhuma análise, ser considerado o motivo do conflito; Ferdinando serviu como uma desculpa conveniente para países já prontos para a luta armada se voltarem uns contra os outros, com alianças complexas arrastando várias nações para o conflito.

A guerra transformou drasticamente a sociedade britânica. O exército britânico, inicialmente pequeno e voltado para o policiamento do império, teve que se adaptar rapidamente às demandas da guerra industrial em larga escala. O número de voluntários num primeiro momento foi gigantesco, com a Inglaterra vendo uma onda de nacionalismo que chegou a colocar as lideranças socialistas mais radicais do país em alinhamento temporário com o governo. A mobilização em massa e o recrutamento obrigatório a partir de 1916 – quando a quantidade de voluntários começou a diminuir, e batalhas como o Somme tornaram a entrada de novos rapazes mais importante do que nunca – alteraram profundamente a relação entre o Estado e os cidadãos.

Apesar de ter sido menos destrutiva para a Inglaterra do que para outros países, a guerra também desafiou as concepções estabelecidas de cidadania e redefiniu os papéis de gênero, com as mulheres assumindo novos papéis na força de trabalho. O conflito teve um impacto duradouro na política e na cultura britânicas, levando a mudanças significativas nas estruturas sociais e econômicas do país. No fim de 1918, o Império Britânico tinha deixado de ser a grande potência do mundo: nascia o século XX como domínio dos Estados Unidos.

O cenário das trincheiras

Já no final de 1914, com a chegada do inverno e a compreensão de que os planos feitos para uma guerra rápida tinham falhado, todos os exércitos, a começar pelo alemão, se viram forçados a abandonar qualquer ilusão da manutenção de uma guerra de movimento e iniciaram os preparativos para uma guerra de trincheiras – estruturas complexas, com aproximadamente 2,30 metros de profundidade e dois metros de largura, que se conectavam entre si e normalmente se estendiam por quilômetros.

O principal objetivo das trincheiras era proteger os soldados e guardar territórios. Sacos de areia e arames farpados eram colocados no topo para proteção contra balas e estilhaços, e um degrau interno chamado “firestep” permitia a observação dos inimigos. As trincheiras eram frequentemente cavadas em zigue-zague para dificultar a conquista pelo inimigo, e tinha “ruas” e linhas de conexão entre si. A estrutura de um conjunto de trincheiras incluía as trincheiras da linha de frente e as auxiliares, além de trincheiras de comunicação. Trincheiras auxiliares e perpendiculares eram adicionadas para aumentar o tempo de reação a ataques e abrigar a segunda e terceira linhas.

Trincheiras salvavam vidas, mas isso não quer dizer que não fossem um inferno de lama. Os soldados enfrentavam condições extremas, expostos a intempéries e ataques inimigos, estavam normalmente atolados em lama, realizavam suas necessidades fisiológicas no local, convivendo com odores desagradáveis de fezes, urina e cadáveres. A proliferação de insetos e pequenos animais era constante. Doenças como o “pé de trincheira” – uma condição em que os tecidos dos pés começavam a apodrecer – eram comuns devido à umidade e ao frio. A rotina incluía vigilância constante, manutenção das estruturas e breves períodos de descanso em condições precárias.

O ambiente das trincheiras tinha um impacto psicológico devastador nos soldados. A constante ameaça de morte, o isolamento e as condições insalubres contribuíam para o desenvolvimento de traumas psicológicos, como o “shell shock”: a convivência com cadáveres e a visão de companheiros feridos ou mortos aumentavam o estresse emocional, e o medo constante de ataques inimigos e a sensação de impotência diante da situação afetavam profundamente a saúde mental dos combatentes.

O alcoolismo do Capitão Stanhope

Stanhope recorre à bebida para suportar o estresse constante das trincheiras e as atrocidades testemunhadas; o próprio capitão menciona que começou a beber após voltar de sua primeira licença, quando os horrores da guerra começaram a cobrar seu preço, especialmente após a batalha de Vimy Ridge – onde o capitão foi condecorado com a Cruz Militar por algum ato de heroísmo. O álcool é a desesperada tentativa de Stanhope de escapar da consciência plena dos horrores ao seu redor.

Seu vício se manifesta sobretudo em seu consumo excessivo de whisky; ele é conhecido por beber uma garrafa inteira em pouco mais de uma hora – seus colegas o cronometraram, uma atitude contundentemente reprovada por Osborne, que diz que quando um jovem rapaz é alcoólatra, ele é visto pelos outros como uma aberração, porém uma aberração interessante, e eles “pagam com uma garrafa de whisky pela mórbida curiosidade de vê-lo bebê-la”.  O alcoolismo de Stanhope afeta seu comportamento, tornando-o irritadiço com outros oficiais e paranoico, especialmente em relação à Raleigh, temendo que ele revele seu vício para Margaret.

Hierarquia e dinâmica de poder

As tensões entre oficiais e soldados são evidentes na peça. Stanhope, como oficial comandante de sua companhia, enfrenta o desafio de manter a disciplina enquanto lida com seu próprio trauma e alcoolismo. A cena de confronto entre Stanhope e Hibbert ilustra essas tensões com perfeição. Nela, Stanhope acusa um dos oficiais subordinados a ele, Hibbert, de fingir uma nevralgia para fugir da iminente ofensiva alemã. Com a insistência de Hibbert, Stanhope quase o mata, puxando seu revólver e ameaçando atirar nele para poupá-lo da vergonha de um pelotão de fuzilamento caso ele continue a tentar ir embora.

Stanhope é justo, porém; quando Hibbert admite que está aterrorizado – as sensações que ele descreve são similares a sintomas de choque e pânico -, Stanhope admite que sente exatamente a mesma coisa, e tenta convencê-lo a enfrentar a situação da melhor maneira possível, e oferecendo-se para “segurar sua mão” para que os dois gritem juntos “como garotinhas” toda vez que um rato fizer barulho.

Ao mesmo tempo em que tem o domínio de sua companhia, porém, Stanhope é subordinado a seus oficiais superiores, e isso se mostra bastante claro quando ele é obrigado a acatar, contra sua vontade, as ordens de enviar seus homens em uma missão altamente perigosa – considerada como suicida por muitos -, em condições com as quais ele não concorda, e sequer pode escolher que oficiais serão enviados – Stanhope a princípio quer ele mesmo liderar a missão, mas seus superiores o proíbem, dizendo que precisam dele na frente, e o fazem enviar o extremamente inexperiente Raleigh em seu lugar. A missão custa alguns homens a Stanhope – incluindo seu grande amigo e confidente, Osborne – e ele claramente se ressente do resultado.

O peso da responsabilidade é um tema central em “Journey’s End“. Stanhope sente profundamente o dever de liderar seus homens, mesmo à custa de sua própria saúde mental. Ele critica planos de ataque que considera absurdos, mas no fim os leva adiante, demonstrando o conflito entre seguir ordens e proteger seus subordinados. A pressão de tomar decisões que afetam vidas amplifica o estresse psicológico dos oficiais, e Stanhope representa-o muito bem: em reflexões próprias, ele admite usar o álcool tanto para conseguir se manter no serviço sem ser forçado a se afastar por seus sintomas relacionado a choque e outras aflições mentais, e também para se esquecer dos horrores que ele vê e das decisões que ele é forçado a tomar.

Trauma de guerra e seus efeitos

O trauma de guerra tem um impacto profundo na saúde mental dos soldados, como retratado em “Journey’s End“. Conhecido na época sob o nome de shell shock, uma expressão cunhada durante a guerra, o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT) é uma das consequências mais comuns, com uma prevalência elevada até a atualidade entre soldados, afetando até 75% dos veteranos, com efeitos que podem persistir por anos após o conflito, manifestando-se de diversas formas. Uma condição clínica que pode ocorrer após a vivência de uma situação estressante traumática externa, para uma condição ser caracterizada como TEPT, os sintomas devem persistir por mais de um mês após o evento traumático e afetar significativamente a vida do indivíduo.

Caracterizado por sintomas como ansiedade intensa, hipervigilância e dificuldade em readaptar-se à vida civil, por alterações negativas nas cognições e no humor, incluindo crenças persistentes sobre a imprevisibilidade e o perigo do mundo, irritabilidade e dificuldades de concentração, e mesmo por sintomas físicos, como dores, tiques e outras reações nervosas, diferentes tipos de TEPT eram comuns nas trincheiras, e parecem afetar boa parte dos personagens de Journey’s End – sobretudo Stanhope e Hibbert.  Um dos sintomas mais perturbadores do TEPT são os flashbacks, pensamentos intrusivos e pesadelos recorrentes: essas memórias intrusivas fazem com que o indivíduo reviva o trauma, muitas vezes de forma vívida e descontextualizada. O embotamento emocional é outro efeito comum do trauma de guerra, bem como a ativação neuroafetiva e os comportamentos evitativos. Os veteranos podem ter dificuldade em expressar ou sentir emoções, afetando suas relações pessoais e profissionais. O TEPT pode estar relacionado com pânico, depressão e ansiedade.

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Fatores de risco para o desenvolvimento do TEPT incluem a intensidade e duração da exposição ao trauma, bem como vulnerabilidades individuais. Exatamente por isso, o shell shock era tão comum entre soldados de trincheiras: a participação em combates, testemunhar mortes violentas e ser vítima de agressão física, todas circunstâncias comuns no dia a dia desses homens, estão associados a maior risco de cronicidade. A falta de tratamento adequado e o estigma relacionado com o TEPT – que na época ainda era entendido por muitos como um sinal de covardia, e em alguns casos poderia acabar em uma corte marcial ou um pelotão de fuzilamento (algo com o qual o próprio Stanhope ameaça Hibbert) – eram fatores significativos na piora dos sintomas.

A relação entre trauma e alcoolismo

Exatamente em função da falta de outras opções, e com a intenção de mascarar os sintomas para evitar a estigmatização, o desenvolvimento de dependências era muito comum nas trincheiras. O trauma e o alcoolismo estão frequentemente interligados, formando um círculo vicioso que afeta profundamente a saúde mental e física dos indivíduos, com a bebida muitas vezes sendo usada como uma forma de automedicação para lidar com os sintomas do trauma, especialmente em casos de TEPT. Essa relação está no centro de Journey’s End.

O alcoolismo em “Journey’s End” reflete a teoria da automedicação, onde indivíduos usam substâncias sem indicação para aliviar sintomas de trauma. O álcool atua como depressor do sistema nervoso central, afetando neurotransmissores e causando efeitos nocivos. Seu uso como mecanismo de enfrentamento quase invariavelmente proporciona alívio temporário, mas a longo prazo agrava os sintomas do trauma e com frequência leva à dependência e à neurodegeneração. Em “Journey’s End“, o consumo excessivo de Stanhope reflete esses efeitos. O rapaz recorre ao whisky, justificando-se com sua própria admissão de que sem a bebida enlouqueceria de medo, mas seu abuso rapidamente se transforma em um problema, alterando seu comportamento e julgamento.

A situação de Stanhope era comum. Estudos mostram que indivíduos com histórico de trauma têm maior probabilidade de desenvolver problemas com álcool, com alta prevalência entre veteranos de guerra, cujas taxas de alcoolismo são significativamente superiores as da população geral, com o trauma de combate e o estresse prolongado contribuindo para esse padrão. Por sua vez, o abuso de álcool pode aumentar a vulnerabilidade a novos traumas e dificultar o tratamento do TEPT. As consequências desse ciclo são devastadoras, afetando não apenas a saúde mental, mas também relacionamentos, desempenho profissional e qualidade de vida geral.

Esse é o exato problema de Stanhope: oficiais reconhecem sua imensa competência, mas muitas vezes o evitam e o temem por medo de seus acessos de raiva. Ele é perseguido por medo, culpa e autodepreciação na medida em que se afunda cada vez mais na bebida – ele sequer retorna para casa durante suas licenças, preferindo permanecer na França a reencontrar sua família, que não sabe de sua condição. Quando Raleigh chega nas trincheiras, Stanhope se vê confrontado com a real possibilidade de ter toda a sua vida fora das trincheiras arruinada por um possível relato do amigo – o que o leva a entrar em uma espiral de paranoia e raiva.

O papel do álcool na cultura militar

Durante a Primeira Guerra Mundial, soldados britânicos e da Commonwealth recebiam rações diárias de rum nas trincheiras. A quantidade era de 70ml, consumida na presença de um oficial para evitar excessos. As garrafas eram marcadas com “SRD” (Supply Reserve Depot), mas os soldados criavam significados alternativos como “Seldom Reaches Destination” (Raramente Chega ao Destino).

O consumo de álcool nas trincheiras tinha um papel social importante. Os soldados bebiam para comemorar o retorno de operações bem-sucedidas – conforme representado em Journey’s End, quando o retorno da missão da Companhia de Stanhope com um soldado alemão feito refém faz com que garrafas de champanhe e charutos sejam enviados para eles -, para lidar com a ansiedade antes de missões perigosas, ou simplesmente para manter a camaradagem. Em ocasiões especiais, como aniversários ou feriados, o consumo aumentava, servindo como uma forma de escape e alívio emocional ou recompensa por um trabalho bem feito.

Apesar das políticas oficiais proibirem a embriaguez, o consumo de álcool era amplamente tolerado e até incentivado pelas autoridades militares. O álcool era visto como um “estabilizador” que ajudava os soldados a lidar com o estresse do combate e as difíceis condições de vida nas trincheiras. No documentário “Eles não envelhecerão”, mais de um veterano menciona que muitos oficiais embriagavam seus soldados de propósito antes de operações e batalhas, para mantê-los calmos e evitar ataques de pânico ou “covardia” no momento. Esta realidade contrastava com as regulamentações oficiais, refletindo a complexidade do papel do álcool na cultura militar durante a guerra.

Sherriff não deixa de comentar o assunto. Em determinado momento, o comandante de outra companhia, Hardy, em conversa com Osborne, fala depreciativamente da bebedeira de Stanhope: “Ah, ele é um bom homem, eu sei. Mas eu nunca vi um jovem beber whisky como ele. Sabia, da última vez que estávamos descansando em Valennes ele veio jantar conosco e bebeu uma garrafa inteira em uma hora e catorze minutos – nós o cronometramos”. Com desdém, Osborne responde: “Eu suponho que isso tenha divertido todos. Eu suponho que todos o tenham incentivado, e dito que aquilo era um feito esplêndido”.

Representações de masculinidade

A questão do álcool na cultura militar está intrinsecamente conectada com a ideia de masculinidade. Em “Journey’s End“, como na realidade da Grande Guerra, a masculinidade é uma noção complexa, contrastando as expectativas sociais com a brutal realidade da guerra e as necessidades humanas. O ideal do gentleman britânico, elegante e estoico, é confrontado com o trauma das trincheiras.

Stanhope encapsula muito bem essa relação complicada: como oficial, deve manter uma fachada de força, mesmo enfrentando o alcoolismo e o estresse pós-traumático – duas coisas que, na condição de “fraquezas” mentais, contrastam vivamente com essa ideia. São várias as maneiras sutis que Sherriff tem de mostrar essa dicotomia entre a expectativa de uma masculinidade quase grosseira e o verdadeiro cavalheirismo de Stanhope, além das características que não são tidas como particularmente masculinas em nenhuma dessas concepções: ele participa de conversas sobre mulheres com seus colegas, mas visível e vocalmente se incomoda com os comentários e histórias crassas de um ou dois deles; ele ameaça atirar em Hibbert por sua tentativa de fugir de seus deveres, mas o abraça e conforta no minuto em que ele admite estar com medo; ele é duro com Raleigh, mas chora como uma criança quando ele é morto; ele bebe seis garrafas de whisky em menos de uma semana, mas está constantemente preocupado com a opinião que sua namorada terá dele.

Esse tipo de duplicidade parece ser enfatizada dentro da própria história, quando Hardy, em uma conversa com Osborne, conta quase como se estivesse fazendo uma fofoca que em determinada noite Stanhope teve um surto de raiva durante um desacordo em um jantar, e depois de seu arroubo de agressividade, começou a chorar na frente de todos os outros oficiais presentes. Osborne responde simplesmente que já sabe, o que choca Hardy, dizendo que ele e os outros tinham feito todo o possível para manter a situação em segredo. Hardy fica imensamente surpreso quando Osborne diz que ficou sabendo através do próprio Stanhope, que contou tudo para ele. Esse fato parece causar grande desconforto em Hardy, que claramente não sabe como reagir, e tem o fator simbólico adicional de enfatizar que Stanhope, ao menos com Osborne, é honesto sobre sua fragilidade emocional e conta mesmo situações que, para todos os efeitos, são motivo de vergonha, e que Osborne, por sua vez, trata tais eventos com naturalidade livre de julgamentos.

O filme de 2017 adiciona uma cena que facilmente passa despercebida entre tantos momentos profundamente tensos, mas que é um excelente exemplo do caráter de Stanhope como um todo: quando seus homens estão prestes a subir para um ataque com o qual ele não concorda, mas que foi obrigado a ordenar, Stanhope fala pessoalmente com cada um deles logo antes de saírem, lhes dando conselhos e encorajamento, ajudando-os a subir e prometendo que terá chocolate para eles quando retornarem. Detalhes na atuação de Claflin na cena, sobretudo na forma como ele ajuda seus homens a subirem e se manterem de cabeça baixa, e no pesar com que anuncia o início da missão, dão ainda mais profundidade emocional para a cena, e foram muito elogiados então.

A peça explora a tensão entre vulnerabilidade e estoicismo, algo muito importante, mas pouco discutido, no contexto da masculinidade dentro de um ambiente militar do início do século XX. A história é extremamente emocionalmente carregada, e tem apenas personagens masculinos – homens que choram, que se desesperam, que têm medo, que mostram afeto, que têm relacionamentos de amizade fortes uns com os outros. Esses homens lutam para manter a compostura diante do horror da guerra, muitas vezes jogando fora sua saúde e sanidade para isso, refletindo as expectativas sociais de masculinidade da época. Mas, em vários momentos, eles demonstram imensa vulnerabilidade. O alcoolismo de Stanhope revela a fragilidade por trás da máscara de coragem; o whisky é o recurso que ele enxerga para manter sua liderança e suprimir suas emoções em um ambiente traumático, e onde suas decisões afetam seriamente a vida de outros.

O consumo excessivo de álcool foi e continua sendo para muitos – e em lugar nenhum mais do que num contexto militar de conflito – uma “muleta masculina”, um mecanismo de enfrentamento socialmente aceito – para homens, sobretudo então, muito mais do que opções mais saudáveis, como tratamento médico – para lidar com o medo, o trauma e a fatalidade. A bebida, conhecida por eufemismos como “coragem líquida”, era mecanismo de socialização, ferramenta de supressão emocional e medicamente tudo de uma só vez, tornando o alcoolismo uma realidade comum que se entrelaçava com as expectativas de masculinidade da época e do contexto social e cultural das trincheiras.

Representação do alcoolismo em Journey’s End

Sherriff retrata o alcoolismo de forma vívida através de descrições físicas e comportamentais. A dependência de Stanhope do whisky é evidente em seu comportamento errático e irritadiço, especialmente quando está em abstinência. Apesar de ser jovem, ser descrito como alto e bonito, e historicamente ter sido interpretado por atores como Laurence Olivier, Jeremy Northan e Sam Claflin, Stanhope é descrito como sendo pálido, tendo olhos injetados, olheiras e mãos trêmulas, sinais físicos típicos do abuso de álcool. Ele sofre de privação de sono, exibe sinais óbvios de estresse e apresenta comportamento workaholic, possivelmente para evitar pensamentos intrusivos. Stanhope também experimenta alucinações – ele diz ver as minhocas da terra consumindo as paredes das trincheiras, dentre outras coisas – e sensação de isolamento, sintomas comuns do TEPT.

O consumo excessivo de álcool de Stanhope é evidente em toda a peça. Ele bebe “como um peixe”, usando o whisky como mecanismo de enfrentamento para lidar com o trauma da guerra. Seu alcoolismo tem um impacto significativo em seu comportamento e julgamento, refletindo os efeitos nocivos do álcool no sistema nervoso central. A relação entre o TEPT de Stanhope e seu alcoolismo ilustra a comorbidade comum entre essas condições. Ele usa o álcool para escapar da consciência plena dos horrores da guerra, demonstrando como o trauma pode levar ao abuso de substâncias.

Os diálogos em “Journey’s End” revelam a complexidade da situação do capitão. Ele frequentemente justifica seu vício como necessário para suportar o estresse da guerra, admitindo que sem a bebida, enlouqueceria de medo e, entretanto, claramente se sente extremamente mal a respeito de seu vício, com um padrão de comportamentos e falas que indicam sua decepção consigo mesmo e sua opinião autodepreciativa de sua vida. Ele afirma que beber é uma alternativa melhor do que fingir estar doente para voltar para casa, como outros fazem, vendo no álcool sua única chance de escapar da consciência plena dos horrores ao seu redor, especialmente após os eventos traumáticos em Vimy Ridge, e continuar cumprindo seu dever com honra. Suas conversas com outros personagens, especialmente Osborne, em momentos de relativa lucidez, porém, expõem sua luta interna e vergonha.

As reações dos outros personagens ao alcoolismo de Stanhope variam. Alguns, como Hardy, expressam admiração por sua capacidade de beber grandes quantidades, embora o oficial também admita evitá-lo em função de seu comportamento irascível. Osborne, por outro lado, demonstra preocupação, mas sempre tenta proteger Stanhope, explicando seu comportamento como resultado do estresse do comando, defendendo-o de qualquer comentário crítico, e tentando ajudar o próprio Stanhope a não se culpar tanto por sua situação, lembrando-o que ele poderá se curar quando tudo estiver terminado. Ele se ressente da maneira como outros parecem ver a situação de Stanhope como reprovável; muitas de suas falas parecem ecoar a opinião do próprio Sherriff sobre a forma como os homens que Stanhope representa eram tratados e percebidos. Em determinado momento, Osborne, falando com outro oficial, reclama: “Por ter aguentado até seus nervos serem despedaçados e estarem em frangalhos, ele é chamado de bêbado”. Trotter e Hibbert parecem ter medo dele, e Raleigh fica chocado com o que vê. Essas diferentes perspectivas refletem as atitudes complexas em relação ao consumo de álcool durante a Primeira Guerra Mundial.

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Sherriff escreve uma representação realista do alcoolismo e do trauma de guerra, evitando estereótipos comuns, muito provavelmente em função de ter visto as condições em pessoa durante seu tempo no combate. A peça não apenas retrata com precisão os sintomas do TEPT em Stanhope como também mitos sobre alcoolismo e trauma de guerra, mostrando a complexidade dessas condições na medida em que o autor não retrata Stanhope como um simples “bêbado” ou “covarde”; o capitão, pelo contrário, é apresentando como um líder corajoso e capaz que luta contra seus demônios internos, e que genuinamente enxerga no álcool não apenas um remédio, mas uma forma de se manter responsável, pois é a única maneira que enxerga de conseguir continuar no serviço e não abandonar seus homens. Suas conversas sobre Hibbert são particularmente reveladoras nesse sentido: ele enxerga a tentativa de seu colega de “fugir” por contra de uma nevralgia como covardia, e claramente vê sua própria solução como mais correta.

A autenticidade clínica de “Journey’s End” teve um impacto significativo na percepção pública do trauma de guerra e do alcoolismo já no final da década de 1920. A representação realista da vida nas trincheiras e dos efeitos psicológicos do conflito contribuiu para uma maior compreensão dessas questões, influenciando obras posteriores sobre a Primeira Guerra Mundial.

O Capitão Stanhope como anti-herói

A imagem inicial que Sherriff apresenta de seu protagonista – a primeira cena da peça é uma conversa entre o amigo e grande defensor de Stanhope, Osborne, e Hardy, outro oficial, em que os dois discutem Stanhope – é a de um comandante irritadiço e ébrio. Ao longo da história, porém, a audiência é apresentada a um Stanhope cada vez mais complexo e vulnerável, compassivo, preocupado com o bem-estar de seus homens, e justificadamente respeitado por todos, inclusive por seus superiores. Sua interação com o Tenente Hibbert, sua relação com Osborne e o conforto que oferece ao Tenente Raleigh moribundo revelam sua humanidade e seu profundo afeto pelos homens sob seu comando, destacando a complexidade de seu caráter como anti-herói em “Journey’s End“.

É interessante observar a comparação implícita feita entre o capitão Stanhope comandante de uma companhia, e o Dennis Stanhope que era monitor no colégio; Raleigh sempre descreve a forma como ele era idolatrado, como era extremamente competente nos esportes, como era um grande amigo seu apesar da diferença de três anos. Ao mesmo tempo, ele menciona que já naquela época ele tinha um temperamento forte e um grande senso de responsabilidade. Ao ser alertado que seu amigo pode ter mudado um pouco desde seu último encontro, e que seu temperamento tem estado mais volátil, Raleigh ri e responde:

“Ah, eu conheço o temperamento do velho Dennis! Eu me lembro de uma vez em que ele pegou alguns rapazes em um escritório com uma garrafa de whisky. Senhor! O teto quase explodiu. Ele deu doze [pancadas] em cada um com um taco de críquete. Ele era muito sério sobre todos os rapazes da casa [divisão escolar comum em escolas britânicas, da qual Dennis era monitor] se manterem em forma. Ele era terrivelmente contra fumar – e esse tipo de coisa”.

A menção a vícios, e sobretudo à garrafa de whisky, serve não apenas para ilustrar a mudança operada em Dennis pelos três anos de combate – ele passa de um rapaz que despreza qualquer vício ao ponto de bater em seus colegas com um taco de críquete como punição por tais infrações para um homem que não consegue passar mais que algumas horas sem uma garrafa de whisky por perto, além de fumar copiosamente -, mas também para lançar as bases para a autodepreciação e a opinião claramente negativa que o capitão tem de si mesmo e de sua situação, além de explicar seu medo da opinião de Raleigh. Ele próprio era contundentemente contrário a bebida e aos vícios poucos anos atrás; é natural que ele despreze os hábitos que formou, e mais ainda que espere um julgamento duro das pessoas por quem ele tem consideração.

Simbolismo e metáforas

Na obra de Sherriff, a garrafa de whisky tem um papel central como objeto cênico, simbolizando a dependência de Stanhope e sua luta contra o trauma. A presença constante da garrafa nas trincheiras é uma manifestação física eterna do conflito principal – o alcoolismo de Stanhope, materializado na garrafa. A peça contém referências sutis ao álcool em quase todas as cenas, seja de maneira visual ou através de diálogos, reforçando seu simbolismo e sua prevalência. As menções frequentes à bebida pelos personagens, o beber constante – por parte dos cinco oficiais, não só de Stanhope -, a presença da bebida em todas as refeições, a forma como estão sempre oferecendo uma dose uns aos outros, todos esses momentos pequenos, muitas vezes marginais, destacam sua importância na vida das trincheiras e servem para lembrar o público do papel onipresente do álcool como mecanismo de enfrentamento durante a Primeira Guerra Mundial.

O filme de 2017, por sua natureza cinematográfica, tem ainda mais meios de fazer esse tipo de referência visual, frequentemente mostrando figurantes bebendo, iniciando ou terminando cenas com close ups de garrafas ou copos de whisky, mantendo-os como eternos objetos cenográficos casuais nas mãos de seus personagens, e focalizando o álcool e seus símbolos como uma temática visual central da história, comumente, mas não sempre, associada com Stanhope.

Ainda em termos de cenário, a vela representa a fragilidade da vida nas trincheiras. Seu comportamento simboliza o estado emocional dos personagens e o destino iminente. A chama inquieta reflete a ansiedade dos soldados, enquanto sua extinção indica a morte ou o fim da esperança, simbolizando a maneira como as trincheiras eram um lugar onde a vida podia se extinguir tão rapidamente quanto uma vela.

Sam Claflin como Stanhope

A comida em “Journey’s End” também tem um significado profundo, representando conforto e normalidade em meio ao caos da guerra. As refeições compartilhadas pelos oficiais no abrigo são centrais para o desenvolvimento da ação, e servem como momentos de pausa e camaradagem entre os soldados, embora com frequência terminem em conflito. A qualidade e quantidade da comida também refletem as condições e o moral das tropas, tornando-se um símbolo tangível das privações enfrentadas no front.

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O contraste entre luz e escuridão é um motivo recorrente, simbolizando a dualidade da experiência humana na guerra. A escuridão das trincheiras representa o medo e o desconhecido, enquanto momentos de luz simbolizam esperança e clareza. Este contraste também reflete o estado psicológico dos personagens, alternando entre períodos de lucidez e desespero, especialmente evidenciado no comportamento do Capitão Stanhope. Na peça, isso é demonstrado pela luz que surge ou se apaga na entrada do abrigo – sempre especificada por Sherriff em seu roteiro.

O filme de 2017 tem mais liberdade nesse sentido; os momentos de “luz” são gravados do lado de fora do abrigo, na parte superior da trincheira. É interessante notar que todas as cenas em que Stanhope está terrivelmente bêbado ocorrem dentro do abrigo, normalmente de noite, enquanto as cenas onde vemos um Stanhope mais sóbrio – seja brigando por seus homens na tentativa desesperada de evitar o ataque suicida ou tentando apoiá-los e confortá-los quando seus esforços falham – são quase todas gravadas a céu aberto. A única exceção – uma exceção brilhante e extremamente significativa – é a cena da morte de Raleigh, quando Stanhope leva o menino ferido para uma das camas dentro do abrigo. Está amanhecendo, e enquanto Raleigh agoniza, a luz passa pela porta. Após a morte do jovem, Stanhope chora copiosamente, mas é chamado de volta para lutar. Deixando o corpo do amigo no interior do abrigo, ele sai em direção à luz; uma explosão faz com que parte do vão da porta se desintegre, caindo em Stanhope, o empurrando para dentro do abrigo mais uma vez e o derrubando no chão. Ele se levanta, porém, e sai para a trincheira em céu aberto; na última vez que o vemos, ele está sóbrio; ele acabou de perder seu melhor amigo de infância, uma batalha feroz está acontecendo ao seu redor, e ele apenas olha para tudo antes de se juntar aos seus companheiros. Está de dia.

O amigo do Capitão Stanhope

O Capitão Stanhope é, sem sombra de dúvidas, o grande trunfo do trabalho de Sherriff – aquilo que o faz ser tão grande quanto é (certamente a desaparecida Protagonista Feminina pela qual um produtor tanto protestou, nesse caso, não fez falta). Um personagem complexo, retratado como um anti-herói em essência, o capitão de apenas 21 anos luta contra seus demônios de maneira nem sempre adequada, mas sempre compreensível. Sua dependência revela sua vulnerabilidade humana – uma vulnerabilidade que faz com que ele trate outros, e especialmente Raleigh, de maneira por vezes excessivamente ríspida, irada e desagradável. Ele tem surtos de raiva e paranoia, mas está sempre calmo e composto nos momentos de grande importância. Ele grita com seus colegas oficiais, mas os apoia quando eles revelam seus medos. Apesar de suas falhas, Stanhope é considerado um líder nato, respeitado por seus homens. Sua capacidade de comandar eficazmente, mesmo sob extremo estresse, demonstra sua força. No entanto, sua relutância em retornar para casa e enfrentar sua família e sua namorada expõe sua autopercepção vergonha.

Há muito para ser dito e discutido sobre esse gigante protagonista do teatro britânico. Osborne diz “Eu amo aquele rapaz. Eu iria para o inferno com ele”, enquanto um dos sargentos sentencia: “ele é de longe o melhor comandante de companhia que temos”. Outros personagens, como Hardy, parecem ter por ele um tipo de fascínio mórbido combinado com algum nível de condescendência e desaprovação. O próprio Stanhope parece simultaneamente se achar superior aos que desistem sem tentar fazer nada para se manterem firmes no serviço, e ter imensos problemas de autoestima, demonstrando sentimentos negativos que beiram o ódio contra si próprio em muitas ocasiões. Nada, porém, é mais eloquente a respeito do caráter de Stanhope do que a carta que Raleigh escreve para sua irmã – a temida carta que Stanhope faz de tudo para sabotar, certo de que, tendo testemunhado sua bebedeira, seus acessos de raiva e sua total incapacidade de permanecer sóbrio, Raleigh dirá coisas terríveis a seu respeito. Quando ele finalmente lê a carta, porém, ele se surpreende e se envergonha ao ponto de não conseguir terminar, pois foi essa a impressão transmitida por seu amigo, como lida em voz alta por Osborne:

“’…e então Dennis entrou. Ele parecia cansado, mas isso é porque ele trabalha tão terrivelmente duro, e por causa da responsabilidade. Então eu fui a serviço para a linha de frente, e um sargento me contou tudo sobre Dennis. Ele disse que Dennis é o melhor oficial do batalhão, e que os homens simplesmente o amam. Ele quase nunca dorme no abrigo; ele está sempre na linha de frente com os homens, os alegrando com algumas piadas e deixando-os entusiasmados com as coisas, como ele fazia com as crianças na escola. Eu estou terrivelmente orgulhoso em pensar que ele é meu amigo.’”

[Há um silêncio. STANHOPE não se move enquanto OSBORNE ] Isso é tudo. [Pausa]. Devo selá-la?

            [STANHOPE se senta com a cabeça baixa. Ele murmura algo que soa como ‘Sim, por favor.’ Ele levanta pesadamente e cruza para as sombras próximas da cama de OSBORNE. O sol está raiando muito brilhante na trincheira do lado de fora.]

Cai o pano.”

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