“A vida afinal”: Cynthia Araújo conclama o direito a morrer em paz

O que você faria se soubesse que lhe restam apenas alguns anos, meses, semanas ou até mesmo dias? Tem uma música do Paulinho Moska que levanta mais ou menos essa questão. Porém, aqui, em A vida afinal: conversas difíceis demais para se ter em voz alta, de Cynthia Araújo e publicado pela Paraquedas, em 2023, diferentemente da letra de O último dia, de Moska, não é o mundo que acaba, mas sim a sua vida, a minha, a daquele ente querido. 

Cynthia nasceu em Petrópolis, no Rio de Janeiro, mas vive em Minas Gerais, onde fez Mestrado e Doutorado pela PUC. É Advogada da União e tem experiência em defender o Estado brasileiro em ações de saúde, dentre elas, pacientes com doenças avançadas e maus prognósticos que através de seus advogados e de posse de um relatório médico, solicitam ao SUS medicamentos e tratamentos muito caros que seriam a última tábua de salvação. 

Caso após caso, entretanto, mesmo com a autorização do juiz e o acesso a esse ou aquele fármaco, ela via os mesmos pacientes morrerem. Onde estava a salvação prometida? Com tal reflexão em mente, Cynthia leva essa inquietação para a sua pesquisa de doutorado e chega à conclusão que muitos desses pacientes não tinham consciência do quão graves eram os seus diagnósticos e os reais prognósticos, o que resultava em uma ilusão, uma falsa esperança de cura. 

Investigando os processos, conversando com especialistas, ouvindo médicos e pacientes, aqui no Brasil e na Alemanha, ela percebe por trás da clara falta de comunicação existente entre essas duas últimas partes, um reducionismo no próprio papel da medicina. Em um mundo profundamente cartesiano como o nosso, no qual tudo foi fragmentado, dividido ao máximo, o paciente deixou de ser uma pessoa, um ser humano, para ser um compilado de membros, órgãos e tecidos. 

Parou-se de analisar o paciente como um todo e esqueceu-se que mais do que tratar doenças, o médico precisa cuidar das pessoas, e as pessoas não são suas doenças. E no caso de pacientes com doenças avançadas, principalmente com câncer metastático, o foco do trabalho de pesquisa da autora, é ainda mais crucial que se estabeleça um relacionamento de confiança para que o médico decida COM o paciente as melhores opções e não PELO paciente com base muitas vezes em reações e respostas a medicamentos que estão bem distantes de uma cura. 

Nesse ponto, Cynthia coloca o dedo na ferida da indústria: 

“O que a indústria tem feito, então, é apresentar bons índices nos chamados desfechos substitutivos, ou seja, resultados que parecem boas notícias, mas não fazem real diferença sobre viver mais ou melhor.”.

Os casos analisados, os pacientes entrevistados, todos eles iriam, em um curto prazo de tempo, morrer. Eles não poderiam ser salvos, pois a medicina, apesar de ter avançado muito, não faz milagre. Decidir o que fazer em uma situação como essa exige conhecimento técnico, mas também acolhimento para que em um momento de tamanha fragilidade a melhor decisão seja tomada. Uma decisão em prol do paciente e não da doença. Uma decisão de forma consciente, uma consciência que só é alcançada através da verdade que muitas vezes médicos não estão preparados para dizer. Isso não significa ser insensível, pelo contrário, verdade e sensibilidade podem e devem andar juntas para que o paciente tenha dignidade, na vida e na morte.

Leia também: “O Mal Não Existe” (2023) mostra que não existem respostas fáceis para dilemas humanos

“É comum que o médico considere mais fácil investir em mais tecnologia a iniciar conversas delicadas e difíceis sobre a proximidade da morte com seus pacientes.” 

No conceito de dignidade não cabe a ilusão. A esperança gerada da ilusão afasta as pessoas das possibilidades reais, nem que essa possibilidade seja a de se despedir de alguém com qualidade. Como na apresentação escrita por Mariana Salomão Carrara: “Este livro é sobre isso: essas duas pessoas (médico e paciente) e a sua conversa e o poder que a compreensão entre elas tem para salvar o que resta.”.

É dolorido ler os recortes das entrevistas de pessoas que sacrificavam o presente em prol de um futuro hipotético e na maioria dos casos inexistente. Eles teriam feito a escolha por tratamentos invasivos ou com tantos efeitos colaterais se estivessem conscientes de que no máximo ganhariam uma pequena sobrevida e muitas vezes sem qualidade com todo esse sacrifício? Teriam eles optado por ficar com a família? Visitar um ente querido em outra cidade?  Reler os livros favoritos? O que eu faria? O que você faria?

Não temos essas respostas. Nada nos prepara para nossa própria morte ou a de alguém que amamos, mas ficou muito claro para mim ao longo da leitura a importância de estarmos conscientes da nossa finitude. 

Capa com destaque escrito por Mariana Salomão
Carrara, Prêmio São Paulo de Literatura

Atravessamos uma pandemia. Vimos de perto a incerteza e a efemeridade da vida, com recortes de raça e classe que não são ignorados por Cynthia, mas a tendência do ser humano contemporâneo é pensar na morte como algo distante, abstrato, mas para pacientes com doenças avançadas ela é o aqui e o agora e muitas vezes considerar o recuo de um tratamento não é pensar na morte, mas na vida. Não é uma derrota, uma perda, afinal, “não se desiste do que nunca se pôde impedir”. No fim, a violência da frase “perdeu a batalha contra o câncer”, como se a pessoa não tivesse se esforçado o suficiente, nunca ficou tão nítida para mim.

O livro que temos em mão é o resultado de anos de estudo, mas não só. Mesclando elementos de sua pesquisa de doutorado, entrevistas, referências especializadas, filosóficas, literárias e sua história pessoal, ela faz algo único. Para além da Academia, temos um verdadeiro manifesto pelo direito à informação, pelo direito à dignidade.   

E se você chegou até aqui imaginando que o livro é cheio de “juridiquês”, está completamente enganado. É um livro acessível. Para todos. A linguagem é fluida e quando algum termo mais técnico aparece ela explica de forma didática. O que não torna o livro simplista. É um assunto complexo e ela o aborda com embasamento, seriedade e principalmente com o cuidado que o tópico exige. 

Cynthia escreve sobre a morte. Nós, leitores, lemos sobre a morte. Não é fácil, acredito que não era para sê-lo também, mas é necessário, pois a oposição entre vida e morte não tem a ver com bem e mal, mas mais sobre início e fim. Tudo tem um fim, inclusive nós. É doloroso, mas a morte é da ordem da vida, ou nas palavras da autora: “a vida só é o que é, porque morremos.”.

Não é um livro para temermos a morte, mas para honrarmos a vida.

Sobre a autora:

Cynthia Araújo escreve no jornal Folha de São Paulo, em que é responsável pelo blog Morte sem Tabu, junto das jornalistas Camila Appel e Jéssica Moreira.

É mestre e doutora em Direito pela PUC-Minas, com doutorado-sanduíche na Universidade de Vechta (Alemanha). Desde 2009, ocupa o cargo de Advogada da União na Advocacia-Geral da União e, sempre que possível, aceita convites para dar aulas.

O livro “A vida afinal: conversas difíceis demais para se ter em voz alta”, publicado pela editora Paraquedas em 2023, é o terceiro livro publicado a partir da sua pesquisa de doutorado, depois das obras “Existe direito à esperança?: saúde no contexto do câncer e fim de vida” (Lumen Juris, 2020) e “Palliative Treatment for Advanced Cancer Patients: can hope be a right?” (Springer, 2023).

Cynthia escreve desde pequena e este ano escreveu seu primeiro romance e seu primeiro livro infantil, ainda não publicados.

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