“As quatro vidas de Daiyu”, de Jenny Tinghui Zhang. Tradução Lígia Azevedo. Editora Vestígio, 2024.
“Deram-me o nome de uma tragédia, eu reclamava com minha avó.”
Não, querida Daiyu, deram-lhe o nome de uma poeta.”
Um nome chinês não é só um nome, é uma expectativa, e assim como os ideogramas que o compõem, traz uma carga simbólica, histórica, filosófica, literária e até artística. Ao escolher o nome Daiyu, personagem do triângulo amoroso de um dos quatro grandes romances clássicos da literatura chinesa, “O sonho da câmara vermelha”, a mãe da nossa narradora via beleza em Lin Daiyu, a jovem melancólica apaixonada por música, poesia e pelo primo, Jia Baoyu, destinado a se casar com outra. Porém, nossa Daiyu, ao invés de poesia, via tragédia e fraqueza.
O ano era 1882, Daiyu vivia com os pais e a avó em uma pequena vila enquanto a Dinastia Qing, que governava a China, enfraquecia-se interna e externamente. Alheia ao processo histórico que se desenrolava ao seu redor, ela se viu da noite para o dia sem o pai e a mãe, obrigada a fugir para Zhifu, a cidade mais próxima. Sozinha pela primeira vez, adotou o nome Feng, o filho do vento, e para sobreviver passou a apresentar-se como um menino órfão em busca de trabalho e comida. E essa seria apenas uma das quatro vidas de Daiyu.
Foi como Feng que Daiyu viu na caligrafia, a arte de escrever os ideogramas chineses, a possibilidade de dominar o pincel com o qual traçaria as linhas da própria história.
“Se a caligrafia era a chave para me separar de Lin Daiyu, eu a praticaria, como instruído por mestre Wang, e me tornaria alguém que não se curva à vontade do destino e à história da qual seu nome tinha sido tirado, alguém que era dona de si mesma e tinha seu próprio legado.”
Essa conexão da personagem com a caligrafia a acompanha até o fim e é uma das coisas mais bonitas no livro, afinal, “cada caractere carrega múltiplas histórias (…) são séculos inteiros passados.” Há uma carga emocional.
São a esses caracteres que ela se agarra quando é sequestrada e traficada para os EUA. Eles viram não só seu guia, mas também sua forma de interpretar o mundo.
“O caractere 黑,, que significa “preto”, é feito de boca, fogo e terra. A boca fica em cima da terra. A ponta da terra divide a boca. Sob ambas, fogo. (…)
Quando o homem das piscadelas foi embora, levou a luz consigo. E acho que finalmente entendo como aquelas três coisas se unem para criar o preto. Sentada no preto agora, eu me vejo dentro de uma boca escancarada, a respiração de cair no inferno da terra. Faço o movimento com o dedo, e muito embora não consiga ver, sei que desta vez escrevi a palavra como deveria ser escrita.
Preto, ou o modo como o tempo desaparece e outra coisa fica suspensa em sue lugar. O modo da solidão.”
Enquanto aprendia inglês, a língua e os caracteres chineses eram também a base comparativa através da qual Daiyu traçava paralelos com o novo idioma. Sendo eles excelentes exemplos de como aprender uma língua é também aprender a forma de pensar de um povo.
“時, o caractere chinês para tempo, é construído com o caractere para o sol, representando as quatro estações. Mestre Wang me contou que, na China antiga, o tempo era marcado de acordo com a posição do sol no céu. A compreensão de que o tempo é circular, de que, não importa o quanto se mova, o sol sempre vai voltar, é inerente a esse caractere.
Em inglês, escreve-se tempo com quatro letras: time. É algo finito, composto por letras finitas. Talvez essa seja a diferença, penso, Para quem fala inglês, o tempo tem um limite. Por isso é tão importante diferenciar passado, presente e futuro.”
Nos EUA, bastou um olhar masculino para ficar clara a intenção para a qual Daiyu fora levada, e da Chinatown de São Francisco à fria Idaho ela precisou mais de uma vez se reinventar para sobreviver, tendo em seu encalço a tragédia de seu nome e uma outra tragédia que varria o país que não era o seu.
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A Califórnia e o território de Idaho foram áreas ocupadas na marcha para o Oeste, incentivada pelo governo, e principalmente na corrida do ouro (1848-1855). Regiões massivamente ocupadas também por imigrantes, inclusive chineses, cuja mão de obra foi essencial para a construção das novas ferrovias que conectariam o país agora de tamanho continental. Porém, ao final da década de 80 do século XIX, passado esse momento de efervescência, digamos assim, a presença chinesa começou a incomodar e uma onda antichinesa violentíssima alastrou-se pela região. Os brancos reivindicavam apenas para si as terras que tomaram dos indígenas.
A ficção histórica escrita por Jenny Tinghui Zhuang encontra-se nesse período da História norte-americana, bem mais que no contexto chinês de crise do governo Qing. Mas ela não é apenas uma ficção histórica, ela traz também um elemento mágico através do folclore, da fábula, que a história de Lin Daiyu agrega ao texto. E apesar do caminho tortuoso, trágico e triste da narradora, da forma como ela briga contra o nome, contra um possível destino atrelado a esse nome, para depois abraça-lo e contar a própria história, esse processo de crescimento e autodescoberta que ao mesmo tempo é uma autoaceitação, é especialmente belo.
Principalmente se considerarmos o trabalho de pesquisa histórica da autora para embasar uma narrativa que mesmo dolorosa, é também de perseverança. Pois além de uma história envolvente, Jenny Tinghui Zhang, como sino-americana, está em uma missão: Tirar da Academia mais esse capítulo violento e tenebroso da História dos EUA. Um capítulo que deixou raízes profundas e que ainda hoje se espalham por aquela terra. Transformar uma placa sem nomes em memória coletiva.
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