“A vida breve dos cães”, de Elton Frederick: distopia íntima que fuça a sociedade contemporânea

As piores distopias são aquelas mais caseiras. Esta foi a frase que me veio à cabeça assim que terminei de ler A vida breve dos cães, do autor Elton Frederick. E essa reflexão aparentemente banal é resultado de uma reflexão muito profunda que o romance produz na gente nas suas pouco mais de 240 páginas.

A vida breve dos cães, romance publicado pela Editora Mondru, em 2023, começa através de uma leitura semiótica e intertextual. A capa com uma senhora de vermelho, tal como santa de altar, ao lado de uma série de vira-latas caramelo chama atenção para uma cena que mistura sagrado e profano com toques contemporâneos de inteligência artificial. Nas epígrafes, o capítulo de gênesis da Bíblia se junta ao escritor argentino Juan José Saer, um dos mais adeptos da literatura do mistério, ainda que nem sempre místico.

Em seguida, começamos a entrar no universo distópico criado por Frederick através de apenas três personagens: Isabel é uma religiosa neopentecostal fervorosa que dedica sua vida à palavra do senhor. Isaque é seu filho adotivo que foi abandonado pelos pais biológicos numa fila de entrega de sopa feita pela igreja. Cecília é uma jovem rebelde com ideias revolucionárias, mas se vê no meio da trama desta família ao se envolver – ainda que quase que por acaso – com Isaque. Esta é a descrição das personagens, vamos para a complexidade da trama:

O país em que se passa A vida breve dos cães viveu uma intensa pandemia. Uma doença que tirou a vida de uma série de pessoas até que se descobrisse que a cura estava no sangue de mulheres saudáveis. Surgiu assim a Solução 79: todas as mulheres, saudáveis ou doentes, seriam entregues para o estado assim que completassem 79 anos. Seu sangue seria doado para uma criança ou adulto doente, de acordo com uma lista de prioridades, e a mulher seria eutanasiada.

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Dentro de nosso pequeno círculo distópico caseiro, temos visões distintas sobre o caso: Isaque acha a solução correta simplesmente porque é uma decisão do estado. Ele, crescido diante da educação religiosa cuja primeira tarefa é obedecer sem questionar, obedece. Cecília, ao contrário, é uma feminista que acha que o direito ao corpo das mulheres era somente delas. Afinal, se faria a mesma coisa se descobrissem que a cura estava no corpo dos homens?

O contraditório está em que o discurso religioso aceita tão facilmente essa nova regra enquanto que é o pensamento laico é aquele que preserva a dúvida do absurdo:

Nunca se tratou de teologia, lógico. Por trás de todo holocausto, há um texto sagrado a dar razão à vontade dos homens; para cada brutalidade praticada, há um profeta, um apóstolo, um pastor ou um padre disposto a declarar que guerra é paz, que morte é vida.

Porém, no caso da vida do trio, o problema é que Isabel, mãe de Isaque, sofreu um acidente alguns anos atrás e está completamente paralisada. Não fala, não anda, não se movimenta, nem sequer se sabe se ela entende o que se diz com ela, mas ali está, na casa de Cecília sendo cuidada por Isaque. Agora, ela fará 79 anos e vai precisar ser entregue para o estado.

Tento condensar um pouco da trama do livro não porque acredite que relatando surja alguma solução. A mágica criada por Elton Frederick é justamente essa: não há solução contra a Solução 79. A narrativa que nos é apresentada aos poucos, como pistas aqui e acolá que nos descem como pílulas, é repleta de ida e vindas com uma característica curiosa: temos a impressão de que o tempo presente é duplicado ou triplicado. É um cuidado que emerge na construção de uma narrativa que a todo instante se atualiza e se presentifica e nos dá a impressão de que, além de um passado remoto da infância de Isaque, estamos diante de vários presentes que se sucedem.

Deste modo, escrever e ler reduplica um efeito que ele trata também como tema: da vida e das figuras também como potencialidades. Ora, uma vez que uma pessoa velha substitui outra jovem doente, um fato brutal do presente é metamorfoseado em um outro mais presente ainda. A vida breve dos cães, assim, se torna um romance de reduplicações e potencialidades, tal como no trecho:

A grande sacada dos defensores da obrigatoriedade foi mostrar que não se tratava de mera substituição numérica. A proposta nunca foi trocar uma vida por outra. Olhar a questão sob essa perspectiva é equivocado. Vida é potencialidade. Lembro bem desta palavra, potencialidade. A uma velha resta muito pouco a descobrir. Pode ser uma verdade dura, mas é assim.

Acho interessante pegar este trecho da descrição de uma coisa para pensar em outra: vida é potencialidade. Literatura é potencialidade. E esta é a maior felicidade do romance de Frederick: explorar nas minúcias todas as potencialidades que sua história propicia, não deixar nenhum aspecto fora do jogo, nenhum detalhe ou particularidade sem ser demovido, explorado, analisado. Dessa forma, o romance ganha nuances de um tratado íntimo diante de sua distopia que, embora seja marcante, apenas ronda o restante da narrativa.

Uma última figura interessante de ser mencionada é a de Mordecai, o cãozinho que Isaque ganha em sua infância e atravessa quase todo o romance. Primeiro, porque a figura como metáfora de uma “vida breve” aparece logo no título do romance; depois porque a forma como as pessoas são eutanasiadas na Solução 79 fatalmente lembram e duplicam o modo como os cães são mortos, fato que não causa qualquer estranheza; mesmo, e ainda porque o cãozinho se torna uma referência de aproximação de construção de laços, uma humanidade pura tal como faz José Saramago em seus romances, como se cães fossem versões melhoradas de seres humanos.

E, por fim, porque Mordecai, que tem esse nome engraçado para um cão (afinal um cão morde e eventualmente cai) remete a um personagem bíblico do Livro de Ester, cujo nome deriva de uma divindade mesopotâmica que era uma protetora da civilização babilônica. Mordecai, um nome de um nome virando nome de um cachorro.

Mas nem a singeleza da figura canina serve de consolo para a inevitável vida sórdida, de um fim que a gente pode prever e contar. De um estado que regula corpos através de tabelas. De religiões que contam e recontam nossas almas incriminando detalhes, perdoando os maiores crimes. A verdade é que Elton Frederick fez em A vida breve dos cães aquilo que uma distopia deve ser: um anúncio urgente, quase um prenúncio de um futuro que fuça a gente.

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