A literatura japonesa é riquíssima em histórias e estilos, muitos deles ainda pouco conhecidos no mundo ocidental. Para trazer um pouco de visibilidade para essas autoras e essas histórias, trazemos 5 autoras para conhecer a literatura japonesa contemporânea.
Sayaka Murata
Sayaka Murata escreve buscando respostas, como uma criança tentando compreender as regras do mundo, o resto é consequência. Relações de gênero, trabalho e sexualidade são comuns em suas obras, por isso sua escrita questiona naturalmente o controle exercido sobre as mulheres, mas também abarca os homens e a sociedade como um todo.
Tida como estranha por muitos, suas obras trazem fascínio ao saírem do lugar comum, arriscarem e questionarem. Em algumas, inclusive, de forma chocantemente natural ela insere temas e cenas que flertam até com o gore. E assim, buscando entender o mundo e seus limites, ela explora o desconforto, brinca com os padrões e as normas enquanto desenvolve uma escrita fluida, ousada, criativa e provocativa.
Nascida em 1979, em Inzai, a 40 km de Tóquio, a autora sempre teve apoio dos pais na empreitada da escrita, que por sinal, começou bem cedo. Leitora voraz de mangás e ficção científica, ela escreve desde criança, mas foi com seu 10o livro, コンビニ人間 , conhecido pelo título Querida Konbini aqui no Brasil, que seu nome ganhou o mundo. Nessa obra, Keiko, a narradora direta, objetiva e deslocada, passou a vida desviando de seus instintos para ser vista pelos demais como “normal”, o que deu relativamente certo até que não foi mais o suficiente, afinal, estar solteira e trabalhar por hora em uma loja de conveniência (a Konbini) não era o adequado para uma mulher de 36 anos. Ela precisava das duas uma: ou arrumava um emprego pleno ou um marido. Porém, ela havia criado uma ilha de normalidade em meio a latas de café gelado, oniguiris e regras de funcionamento. Uma curiosidade é que a própria Sayaka Murata trabalhou em uma Konbini por anos e permaneceu por mais alguns mesmo após a publicação desse livro.
“Não me lembro com clareza de como era a minha vida antes de eu renascer como funcionária da loja de conveniência.
Nasci em uma família comum, num área residencial dos subúrbios, e cresci cercada de amor como qualquer criança. Porém, as pessoas costumavam me achar estranha.”
(Querida Konbini, Sayaka Murata, tradução Rita Kohl. Estação Liberdade, 2019. p. 13)
No Brasil, temos duas obras da autora traduzidas pela Rita Kohl e publicadas pela Estação Liberdade: Querida Konbini, citada anteriormente, e Terráqueos. Em inglês, para além dessas duas, há uma reunião de contos com o título Life Ceremony, traduzida por Ginny Tapley Takemori e que contêm um conto, A clean marriage, que chegou a sair em português, com tradução também da Rita Kohl, na Granta Brasil, volume 13. Nesse conto, um casal deseja ter filhos sem fazer sexo.
Banana Yoshimoto
Banana Yoshimoto é famosa por ter uma escrita oníria, nostágica, e por vezes carregada de polêmica. Filha do poeta e intelectual de esquerda japonês, Takaaki Yoshimoto, nasceu em 1964 como Mahoko Yoshimoto, mas adotou o nome Banana por ser apaixonada pelas flores de bananeira. Com sua obra de estreia, Kitchen, publicada enquanto ainda estava na Universidade, ganhou o prêmio literário Izumi Kyoka e conquistou seu espaço no mercado editorial japonês e internacional.
Kitchen chegou a ser publicado no Brasil pela Nova Fronteira em 1995, mas com uma tradução a partir do italiano por Julieta Leite. A perda e a solidão são temáticas que permeiam as histórias e não só em Kitchen, é algo que ela trás em suas obras, como em outro título da autora também de 1988, mas que por enquanto só foi traduzido para o inglês: The Premonition, traduzido por Asa Yoneda e publicado pela Faber & Faber. Nos dois títulos a polêmica está no ar com famílias não convencionais. Em Kitchen destaca-se uma personagem transgênero a qual a autora dedicou grande deferência e que é um verdadeiro foco de luz, amor e aconchego dentro do romance. Aos olhos do leitor de hoje alguns pontos podem ser bem problemáticos, mas acho que vale a admiração a uma escrita tão transgressora para a época.
“As lembranças realmente belas continuam a viver e a brilhar para sempre, pulsando uma a uma junto com o tempo que vai passando. Quantos almoços, quantos jantares juntos!”
(Kitchen, Banana Yoshimoto, Tradução Julieta Leite. Nova Fronteira, 1995. p. 111)
O charme da escrita da Banana Yoshimoto talvez resida em ao mesmo tempo ela abordar a impermanência e efemeridade da vida com uma pesada melancolia, enquanto por vezes traz personagens que tem um olhar mais “infantil”, inocente, e bobo até, adotando essas duas faces: o peso e a leveza.
Além de Kitchen, que é possível encontrar em sebos, até o momento temos mais dois livros da autora publicados no Brasil: Tsugumi, com tradução de Lica Hashimoto, e Doce Amanhã, traduzido por Jefferson José Teixeira, ambos saíram pela Estação Liberdade.
Yoko Ogawa
Yoko Ogawa acumula prêmios literários no Japão e tem dezenas de livros publicados por lá e pelo mundo. Nascida em Okayama, em 1962, seu grande best seller é 密やかな結晶, cuja tradução para o inglês sob o título The Memory Police foi finalista do International Booker Prize 2020 e do National Book Awards 2019. O livro foi publicado originalmente em 1994 e chegou aqui no Brasil pela Estação Liberdade em 2021 com o título A Polícia da Memória, seguindo a tradução do título para o inglês.
Nesse romance, traduzido por Andrei Cunha e situado em uma ilha sem nome na qual tudo está fadado a desaparecer, encontramos uma distopia das memórias perdidas. Os sumiços, contudo, não começam como algo físico. As coisas, na verdade, desaparecem inicialmente da memória das pessoas, de seus corações, elas simplesmente param de fazer sentido e é aí que a polícia secreta, a polícia da memória, entra: fazer cumprir os desaparecimentos, não deixar qualquer vestígio daquilo que não existe mais. O caráter distópico da narrativa reside nesse estado policial que anula o que é considerado fora do padrão, que persegue aqueles que não esquecem, pois eles existem e precisam se esconder, pois uma vez capturados, eles também estão fadados a desaparecer.
“Os traços da vida do meu pai, que eu mantivera cuidadosamente encerrados ali, agora haviam desaparecido, e em seu lugar, de forma irreversível, encontrava-se instalado um oco.”
(A Polícia da Memória, Yoko Ogawa, tradução Andrei Cunha. Estação Liberdade, 2021.p. 23.)
Com O diário de Anne Frank como uma de suas maiores inspirações e influências, Yoko Ogawa tem na perda e na memória elementos caros às suas narrativas.
“Li O diário de Anne Frank quando tinha catorze anos e percebi que escrever era uma forma de libertação. Minha carreira como escritora começou quando passei a manter um diário. Tentava registrar minhas experiências da forma mais fiel possível, e gradualmente percebi que escrever histórias começa no próprio ato de transformar memórias em palavras. Pouco a pouco, comecei a produzir ficção a partir das anotações que eu trazia nesse diário.”, disse em entrevista.
E foi digerindo a experiência de Anne à sua própria maneira e a recompondo em seu trabalho que a autora criou histórias e imagens que se fixam na nossa memória, muitas vezes colocando em palavras algo que não existe.
Para além de A Polícia da Memória, que inclusive será adaptado para o cinema com direção de Reed Morano e estrelado por Lily Gladstone, a autora tem outros quatro livros publicados no Brasil. O museu do silêncio, com tradução de Rita Kohl, A fórmula preferida do professor, com tradução de Shintaro Hayashi, A piscina; Diário de gravidez; Dormitório, com tradução de Eunice Suenaga, e Hotel Íris, cuja autoria da tradução não foi localizada, e o único não publicado pela Estação Liberdade, mas sim pela Leya.
Mieko Kawakami
Mieko Kawakami é abertamente feminista e traz isso de forma muita clara e direta em suas obras. Nascida em Osaka, em 1976, mudou-se para Tóquio para ser cantora e compositora, mas através dos textos do seu blog foi a autora Mieko Kawakami que acabou nascendo. Hoje traduzida para mais de 30 idiomas, ela chocou o meio literário predominantemente masculino no Japão ao trazer em Peitos e Ovos, publicado aqui no Brasil pela Intrínseca, com tradução de Eunice Suenaga, mulheres discutindo seus mamilos, seus seios, seus corpos e suas imperfeições, enquanto avança pela psique de suas personagens ao abordar questões como pressão estética, sexo e maternidade.
Esse é exatamente o único livro da autora publicado aqui e ele trás a dinâmica de três mulheres: Natsuko, uma escritora de 30 anos, solteira e sem filhos, sua irmã mais velha, Makiko, e a filha dessa irmã, Midoriko. Cada uma está em uma fase da vida e lidando com questões relativas a ser mulher, a esse corpo e sua utilidade em uma sociedade extremamente patriarcal, tudo em uma narrativa intensa, visceral, de tirar o fôlego. Em um segundo momento do livro, quase 10 anos depois, Natsuko está envolta em dilemas muito internos e a autora apresenta uma escrita mais analítica que envolve reflexões morais e questões práticas de se ter um filho sem um parceiro e sem sexo.
“Por alguma razão tenho um corpo que sente fome por conta própria, que fica menstruado por conta própria, e estou presa dentro dele – essa é a sensação que tenho. E, uma vez que nascemos, está tudo decidido: temos que continuar vivendo, comendo, ganhando dinheiro, e é muito duro viver dessa forma. Minha mãe trabalha pesado todos os dias, mas mesmo assim leva uma vida difícil e, vendo-a, penso: pra quê?”
(Peitos e Ovos, Mieko Kawakami, tradução Eunice Suenaga. Intrínseca, 2023. p. 44)
Kawakami discute gênero e classe em muitas de suas obras e busca se distanciar dos clichês que parte da audiência estrangeira, principalmente a anglófana, espera da ficção japonesa. Há muito mais do que gueixas e Monte Fuiji. Levar o Japão de hoje, suas complexidades e desigualdades parece ser uma missão para a autora.
Aoko Matsuda
Aoko Matsuda escreve uma literatura lúdica e que não busca ser uma literatura japonesa em si, mas que aborda o Japão através dos olhos dela e o que ela vê é um Japão patriarcal e desigual. Nascida em 1979, fez sua estreia na literatura em 2007 com uma reunião de histórias curtas e foram exatamente os contos que deram a ela o prêmio World Fantasy Award for Collection de 2021.
A coleção vencedora, inclusive, é a que temos publicada aqui no Brasil. Em Onde vivem as monstras, traduzido pela Rita Kohl e publicado pela Autêntica com uma linda capa criada pela ilustradora Ing Lee, a autora explora histórias e personagens do folclore japonês sob uma nova perspectiva, uma perspectiva feminista e contemporânea.
“Pensar direito no que eu poderia fazer com meus pelos? Que diabos isso queria dizer? Pelos são só pelos, ué.
Mas, no instante em que pensei essa frase, percebi que não era de fato o que eu sentia. Os pelos, o problema dos pelos, me acompanhava todo o tempo. Eu raspava, arrancava, e eles cresciam de novo, sem parar, um moto-perpétuo. Eu era prisioneira dos pelos. Não só eu, mas todas as mulheres.”
( Onde vivem as monstras, Aoko Matsuda, tradução Rita Kohl. Gutenberg, 2023. P. 23.)
Ela reescreve, reinventa, um mundo onde fantasmas assombram, mas também cuidam e protegem, um mundo onde a linha entre vivos e mortos é tênue e por vezes falha, um mundo no qual a metamorfose dá as pessoas mais possibilidades, como a própria autora já declarou em entrevista:
“Metamorfose é sobre possibilidade. Eu quero mostrar a possibilidade da mudança em nós mesmos e na sociedade através dessas histórias de transformação.” (tradução livre)
Matsuda gosta de escrever sobre como o sistema funciona, sobre aqueles que são deixados à margem da sociedade, mesmo que o establishment literário no Japão insista em uma escrita teoricamente apolítica.
Referências:
https://estacaoliberdade.com.br/livraria/murata-sayaka-autora
https://estacaoliberdade.com.br/livraria/yoshimoto-banana-autora
https://www.estacaoliberdade.com.br/livraria/bloco-literario-ogawa
https://www.nytimes.com/2019/08/12/books/yoko-ogawa-memory-police.html
https://www.quatrocincoum.com.br/br/entrevistas/literatura-japonesa/paisagens-compartilhadas
https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/literatura-japonesa/infinito-particular