“Própria Carne”, de Newton Cesar: quando a distopia também é oráculo

Toda distopia é um oráculo. E não digo no sentido metafísico da coisa, do mundo oculto da adivinhação, mas no sentido mais material que um oráculo pode ter. É que se uma distopia revela um “fora de lugar” (dis+topos) das coisas, é justamente na distopia que podemos simular tal vida para, talvez, tentar evitá-la na realidade. A distopia, assim, adivinha um futuro no presente, para evitá-lo enquanto futuro, ao mesmo tempo em que nos permite ensaiar as piores consequências do mundo que estamos criando e nos vermos diante de um espelho que nos diz quem somos e seremos no futuro. Própria Carne, de Newton Cesar, dentre essas distopias, é um dos nossos maiores pesadelos.

Própria Carne é um romance publicado pela editora Minotauro, selo da Almedina Brasil, que conta a história de um mundo assolado por uma pandemia causada por um vírus mortal que se transmite através do contato com as plantas. Em pouco tempo, tudo aquilo que conhecemos como sociedade começa a ruir: corpos empilhados nas ruas, famílias destroçadas enterrando parentes onde era possível, sistemas de governo perdendo o controle estatal. O romance, enquanto no macro nos faz acompanhar as quedas de todas as instituições sociais, no micro, nos faz conhecer a experiência da pandemia através da perspectiva de uma jovem e sua família.

Em um primeiro momento, o romance encara situações bastante conhecidas por nós, sobreviventes da pandemia de Covid-19, conhecedores da peste negra ou, até, leitores de livros como A Peste, de Albert Camus. No começo, a sensação de que aquilo será breve ou rapidamente superado; em seguida, a necessidade de encarar a seriedade dos casos; até, por fim, presenciar a total destruição de toda ordem social.
No caso de Própria Carne, diante do caos e das mortes que se espalham pelas cidades, o que surge como solução é o “Domo”, espécie de área protegida do resto do mundo para onde são levadas as pessoas “limpas” e “puras” (alguma semelhança com as eugenias que conhecemos?), em que os humanos são divididos em castas de acordo com suas funções na sociedade: as jovens, os monitores, as pessoas deficientes, as pessoas que comem muito.

Este espaço, profundamente atravessado pela religiosidade de Messias e as preces de Flor, líderes da comunidade, é mantido na base de uma fé cega de que um mundo puro nascerá através do trabalho de todos que estão ali. Apartada pelo seu sexo biológico e pela sua idade, a jovem, personagem principal, descobre fazer parte do grupo das mulheres escolhidas para dar rumo à nova Terra prometida, mas , apesar disso, sofre mazelas inimagináveis, sob a dominação machista. Uma das passagens em que Maria mostra tal sofrimento é fortíssima, descrita pela jovem assim: 

(…) nós fomos estupradas de um jeito que, se não nos machucaram a carne, feriram a nossa alma. E com fortes estocadas. Eu, a despeito do alívio que havia sentido por estar viva, via-me destroçada.

Um destaque do romance está na articulação que Newton Cesar faz com os versículos bíblicos. Como nesta lavagem das mentes e manipulação das massas o discurso religioso tem bastante força, tudo se dá através de um jogo de linguagem entre o que diz a Bíblia e os possíveis resultados disso na prática: palavras que se diferem do real. Além disso, a religiosidade passa a ser ponto essencial de alienação e desalienação, por exemplo, da mãe da jovem, na medida em que ela se segura nas promessas que recebe da mensagem divina, mas, ao mesmo tempo, passa a adquirir senso crítico justamente ao perceber as incongruências da palavra. Em determinado momento, a protagonista pensa:

Qual era o plano de Deus ao permitir que bilhões de pessoas morressem? Qual era o plano d’Ele para nos poupar?

Outro ponto interessante é uma profunda reflexão sobre as próprias instituições nas quais as personagens precisam se ancorar para viver. A própria sensação de que não há mais o mundo que se conhecia ou que, diante de um mundo ruindo, não há para onde ir, faz com que o Domo passe a ganhar sentido, ainda que não ganhe legitimidade. Logo no começo do romance, por exemplo, Newton nos traz uma reflexão sobre a relação entre castigo e justiça que traz de volta discussões que fizemos durante a pandemia de Covid:

Justo? Eu não vi justiça nenhuma em milhões de pessoas morrerem daquela doença antiga que a mãe me detalhava. Ainda que a penitência pela doença fosse o arrependimento e o autoflagelo, não havia justiça na morte.

Tanto não há justiça na morte que Newton César traz uma pintura clássica, o Triunfo da Morte, de Pieter Bruegel, para espelhar a situação distópica de Própria Carne. Na pintura de 1562, Bruegel retratou a Peste Negra com seu renascimento nórdico caótico e suas figuras amontadas e destroçadas pela doença, numa algaravia babélica (também pintura dele) de sofrimento e mortes tantas, e tão sem histórias, que parecem mesmo aleatórias. É que neste triunfo da morte, Newton só consegue pensar num mundo que ou foi abandonado por Deus, ou está sendo vingado por ele:

Talvez, vingança seja palavra melhor. Proteção, definitivamente, não. Deus vingava-se dos homens, castigava-os dos homens, castigava-os por todas as atrocidades. Só podia ser. Era o que eu achava. Ainda que explicação menos cruel existisse, eu não vislumbrava. Assim, ao atravessar o mar de mortos, chorei.

No fim, apenas a pilha de corpos, as experiências, os corpos cheios de cicatrizes, mas uma esperança, diante de duas figuras que surgem e que, aos poucos, podem refazer a humanidade. Esperamos que de um jeito melhor.

Vale muitíssimo a leitura do livro e parar comprar acesse o link aqui:
https://www.almedina.com.br/produto/propria-carne-11591

Sobre o autor: 

Newton Cesar dedica-se a escrever biografias, ficção (adulto e infantil) e livros de negócios. Entre os romances publicados, destacam-se: Tratamento Especial e Um minuto, ambos lançados pelo selo Minotauro (Brasil), do grupo Almedina.

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