“Cadáver”, do filipino Alberto S. Florentino: violar túmulos para sobreviver

Breve comentário sobre a peça de teatro “Cadáver”, do filipino Alberto S. Florentino

O país escolhido da vez foi as Filipinas e eu fiquei bastante curioso para saber um pouco mais sobre o país que até hoje tive pouco ou quase nenhum contato. Achei particularmente interessante descobrir que, apesar de localizado próximo ao Mar do Sul da China, o conjunto de ilhas das Filipinas se formou a partir de uma mistura das culturas ocidentais e orientais, o que influenciou muito nas artes das suas artes e cultura em geral.

Descobri, por exemplo, que grande parte da cultura do país sofre grande influência da cultura malaia, espanhola e, claro, norte-americana. Eu tive bastante dificuldade de achar uma peça do país, mas encontrei um pequeno escrito, quase uma esquete. Trata-se de Cadáver, de Alberto S. Florentino.

O autor, que também é escritor de roteiros para televisão e cinema, no qual obteve bastante sucesso, atuou proficuamente durante a vida nas artes teatrais. Quando criança, Florentino copiava as peças escritas por seu pai, também dramaturgo, o que lhe trouxe bastante experiência com o gênero dramático, sendo isto determinante para sua atividade futura. Infelizmente, em 2018, Alberto S. Florentino morreu com complicações de um Alzheimer.

Cadáver, de Alberto S. Florentino, conta a história do trio Torio, Marina, que formam um casal, e Carding. Juntos, os três moram em uma espécie de barraco contíguo a um cemitério, construído a partir de restos de caixas e madeiras coletadas pelas ruas.

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No começo da peça, vemos que Torio está dormindo em um berço que mal cabe seu corpo e parece não estar bem de saúde, com um grave ferimento na perna. Marina e Carding tentam cuidar do rapaz que recusa tratamento. Passando por graves dores e desmaios, e sem dinheiro para sequer um tratamento, Torio fica na defensiva, e acusa os dois de quererem que ele morra para terem um relacionamento entre eles. No entanto, o que se revela é aquilo que os tem mantido — os três — vivos: violar túmulos para roubar pertences dos cadáveres do cemitério.

Torio, quando não tínhamos nenhum lugar para morar, nós nos mudamos para cá — para este lugar. Nós pusemos essa casa nesta terra. Eles [os mortos] não reclamaram- eles não nos chamaram de “posseiros” — eles não nos mandaram embora. E o que você os deu em troca — O que?

Cartaz de uma montagem do espetáculo

Todo o texto e Cadáver gira em torno da imagem da morte. A casa, construída de restos, nos remete a ideia de ruína e se contrasta com o pequeno berço que serve de cama, apontando para os dois lados da vida diante da morte: os momentos antes do nascimento e os instantes após a morte. Ambos como faces de uma moeda. Com linguagem seca, breve, típica das narrativas curtas, a peça avança apressadamente, ainda que tendo cuidado para montar o que seria sua grande metáfora.

A pergunta que o espetáculo levanta é: quem são os cadáveres, aqueles que morrem e são enterrados ou aqueles cuja vida são privadas de…bom…da própria viva? Esta leitura nos faz pensar também que a morte não é propriamente uma materialidade, algo que existe entre a vida e a morte, mas um devir que se constrói, ainda, durante a vida.

Uma noite, enquanto eu estava voltando para casa, uma forte chuva me pegou no caminho. Eu corri e me abriguei no túmulo mais próximo, aquele perto da estrada, que pertence a um milionário chinês morto. Era tão bonito — o túmulo — ele parecia mais um palácio do que um lugar para os mortos, com uma grande parede de mármore maciço — e luzes festivas! Dentro estava o corpo — em um caixão.

Ele estava tão seco na chuva e tão confortável mesmo na morte. Por que aquele mercador morto tem paredes de mármore e teto para protegê-lo da chuva — enquanto eu estava lá fora, molhado até os ossos e tremendo de frio — esperando para ir para a casa , um lugar escuro e úmido com um telhado de papelão que molha mesmo com a chuva mais fraca? Por que? Ele está morto e em eu estou vivo! Eu tenho mais direitos às coisas que são gastas com ele — você não acha? Você não acha que eu preciso mais de padeces grossas do que um morto?

Fonte: https://medium.com/teatro-do-mundo/filipinas-cad%C3%A1ver-de-alberto-s-florentino-eaa66cd84749

Via Teatro do Mundo

O projeto Teatro do Mundo é um mergulho no gênero teatral em busca de dramaturgias escritas (e nem sempre publicadas) ao redor do mundo. Todos os dias eu sorteio um país, procuro uma peça dele e escrevo sobre ela. Sejam bem-vindos!

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