Conheça “A Outra Casa”, da escritora inglesa que escreve histórias de Poirot e Mrs. Marple

Sophie Hanna, de “A Outra Casa”, tem autorização para continuar dando vida a Poirot e Mrs. Marple, personagens icônicos da Rainha do Crime.

Invejo todos aqueles que sabem o que os ameaça e podem nomear, mesmo que não possam escapar. Medo sem nada concreto a que se ligar é cem vezes pior que medo com uma causa sólida.

Como conheci esse livro

Fiquei um tempo me perguntando quais seriam os critérios pra seleção dos livros do Projeto Mulheres do Mundo (mais informações sobre ele no final desse texto!). Como escolher uma autora? E tendo escolhido uma, como escolher um de seus livros? Tinha medo de que estivesse sendo injusta, de alguma forma — afinal, será que esse é o livro certo pra representar um país?

Então me dei conta de que as noções de “livro certo” e “representação” não têm nada a ver com esse projeto — não têm nada a ver comigo. É impossível selecionar um livro que represente um país, assim como não faz sentido pensar que o livro que poderia vir a ser o que representa um país fosse o livro “certo”.

Por isso, os critérios de seleção basicamente são um tanto aleatórios. Eu pesquiso na internet sobre escritoras do país em questão, olho os nomes e sinopses que me chamam a atenção e escolho. Nem todo país vai ter um livro cult, diferentão ou desconhecido. Alguns vão ter bestsellers, como é o caso da Inglaterra. E tá tudo bem: bestsellers podem ser tão interessantes quanto livros mais desconhecidos.

Sophie Hannah chegou até mim um pouco por acaso: o livro “A Outra Casa” estava na promoção na loja da Amazon e, sendo um livro de suspense policial, gênero pelo qual sou apaixonada, resolvi baixar no Kindle. Ele ficou lá parado na biblioteca, até que, olhando as próximas opções de leitura, notei que era um livro escrito por uma mulher de um país que ainda não estava no projeto. Por que não lê-lo?

“A Outra Casa”, de Sophie Hanna, publicado no Brasil pela Editora Rocco

Relação com Poirot e Mrs. Marple

Depois fui descobrir coisas incríveis sobre Sophie Hannah — que além de escritora de livros de suspense, autora de uma série de livros sobre os casos dos protagonistas detetives Simon Waterhouse e Charlie Zailer, é poeta premiada e autora de livros de histórias de Hercule Poirot e Mrs. Marple. Sim, os personagens de Agatha Christie: ela foi autorizada pelos descendentes da Rainha do Crime a continuar dando vida a Poirot e Marple. O que só atesta a competência da autora no gênero.

Leia também: Novo livro tenta desvendar os mistérios do “sumiço” de Agatha Christie

“A Outra Casa”

“Não são as casas que causam mal, são as pessoas que moram nela”. Em “A Outra Casa”, a personagem Connie Bowskill navega por um site imobiliário inglês e começa um passeio virtual sobre a casa 11 da rua Bently Grove, em Cambridge — casa pela qual está obcecada. De repente, vê no meio da sala o corpo de uma mulher morta em uma enorme poça de sangue. Assustada, chama seu marido Kit, mas, quando ele olha para a tela, não há corpo algum; a sala está exatamente como deveria estar.

Quando silêncio e medo se combinam, formam um composto mil vezes mais horrendo que a soma de suas partes.

Teria Connie imaginado o corpo no chão? Ou seria o corpo real? Atormentada pela possibilidade de haver uma mulher morta, e segura de que o que viu não foi uma alucinação, Connie vai até a polícia. Procura pelo detetive Simon Waterhouse, mas como ele está em lua de mel quem assume o caso é o detetive Sam Kombothekra. Há poucos indícios de que a visão de Connie era real, mas Sam inicia uma investigação, para garantir. Aos poucos, eventos estranhos e suspeitos vão deixando evidente que algo está acontecendo, ainda que Sam não saiba exatamente o quê.

Connie Bowskill é uma personagem complexa. Há um momento em que ela diz que “não é o esforço físico o que exaure, é o segredo”. Ela não entende o que se passa — desconfia de si, do marido, da polícia, da família. Não sabe nomear o que sente, por mais intenso que seja. Connie tem uma relação complicada com a família, que a faz sentir sufocada e presa à pequena cidade onde mora, e quer desesperadamente se desvincilhar, mas não consegue. Com medo do desconhecido, ela acaba sempre por permanecer por perto, ainda que isso a faça se sentir deslocada e sozinha.

É isso o que significa ser próximo de alguém — conhecer seus limites, suas ilusões ególatras e sua antipatia interesseira, bem como as suas próprias? Ser capaz de prever suas reações, suas expressões faciais e até a última palavra e careta, para que a decepção e uma nauseante sensação de previsibilidade cresçam e arranquem seu fôlego no instante em que bate os olhos na pessoa, antes que qualquer um tenha pronunciado uma palavra?

Seu casamento com Kit sempre foi bom, mas, nos últimos seis meses que precedem a visão da mulher morta no chão da sala, a relação está desgastada pelas suspeitas de Connie de que o marido está tendo um caso. Nesta trama cheia de segredos, suspeitas e obsessões, Bently Grove, 11 em Cambridge e tudo que se relaciona a esse lugar entra em um looping de acontecimentos que acompanhamos de um lugar próximo ao de Connie: sem saber o que é verdade e o que é mentira.

Sinto como se tivesse duas vidas: uma criada pela esperança e outra pelo medo. E se ambas são criações, por que deveria acreditar em alguma?

O desgaste emocional pelo qual Connie está passando agravam suas obsessões e neuroses, a ponto de não só o leitor mas ela mesma questionar sua sanidade. E ao colocar em tensão a sanidade mental de Connie, o que Sophie Hannah faz é lançar um véu turvo sobre todos os acontecimentos. E assim, a tarefa sempre ansiada pelo leitor de suspenses policiais de tentar desvendar o quebra-cabeça se funde agora à tarefa de tentar entender se Connie é ou não uma narradora confiável.

Maluquice não precisa significar invenção. A insanidade é tão real quanto a sanidade.

A construção das personagens

Em “A Outra Casa”, acompanhar a dificuldade de Connie em lidar com os acontecimentos é desgastante. Seu intenso sofrimento diante de situações que para muitas pessoas poderiam ser classificadas como banais convidam a refletir a respeito de saúde mental, de singularidades e da importância de considerar que os modos como as pessoas são afetadas pela vida são diferentes e portanto merecem ser olhados com cuidado. Mas a relação do leitor com Connie é tensa: às vezes, ela parece ter surtado e se desconectado da realidade; em outras, no interior de uma desconexão ela parece ter uma visão clara sobre as coisas, as pessoas e o mundo ao seu redor.

É difícil descrever algo que está faltando. Uma ausência só tem uma forma clara quando um dia foi uma presença, quando você sabe o que sumiu.

Como todo bom livro de suspense policial, nossas expectativas vão sendo continuamente frustradas a cada tentativa que fazemos de entender o que está acontecendo. As narrativas multilocalizadas, que vão se encontrando por meio de pequenas franjas que tocam uma à outra, parecem oferecer tantas pistas quanto despistes no decorrer da narrativa. O resultado é um livro cuja leitura se torna viciante: na ânsia de encontrar explicação para os acontecimentos, nos sentimos obrigados a continuar a ler.

Se ela está mentindo, Sam pensou, então a mentira agora é tão necessária à sua sobrevivência quanto seu coração e seus pulmões; ela irá se aferrar a ela independente de qualquer coisa, pois não consegue imaginar uma vida sem isso.

Vale a pena ler?

Sophie Hannah fez um trabalho brilhante com A Outra Casa. Se eu fosse pontuar uma única questão que me incomodou foi o fato de que, por se tratar do sexto livro de uma série — A série Waterhouse & Zailer — a construção desses dois personagens e sua relação parecem pouco claras para quem, como eu, não começou a série pelo começo. Como é comum com série de livros policiais, como no caso de Jane Rizzoli e Maura Isles nos livros de Tess Gerritsen ou Harry Hole e sua equipe nas obras de Jo Nesbo, as histórias principais são independentes mas as personagens vão sendo construídas no decorrer da série, de modo que é possível ler os livros de maneira desconexa mas somente ao ler toda a série é que conseguimos ter acesso à complexidade das personagens recorrentes em tornos das quais as histórias independentes se desenrolam.

Acredito que essa seja uma das mais difíceis tarefas de séries como essa: dar informações suficientes sobre as personagens para quem nunca leu os outros livros ao mesmo tempo em que se atenta para não repetir elementos já aparecidos em outros momentos da série.

Mas isso não chega a ser de nenhuma forma um problema no livro, que é potencializado pela escrita brilhante, que em vários momentos me lembrou a acidez e perspicácia de Lorrie Moore, genial contista norteamericana.

A Outra Casa é um livro incrível e que insere Sophie Hannah na lista de grandes escritoras(es) de suspense policial da atualidade — e, até onde me interessa, isso coloca o livro como o livro mais do que “certo” para dar forma à Inglaterra nesse projeto.


Este texto faz parte do projeto Mulheres do Mundo – Uma escritora de cada país. O objetivo do projeto é ler um livro de uma escritora de cada país do mundo, sem pensar em quanto tempo isso vai demorar para se concretizar. É um desafio para conhecer a produção literária de mulheres, cada vez mais. Se você quiser se juntar a esse desafio e conhecer os outros textos do projeto, você pode acessar aqui.

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