Eu, Ota, rio de Hiroshima, de Jean-Paul Alègre: a história é um rio

Eu, Ota, rio de Hiroshima é a primeira peça de teatro de Jean-Paul Alègre a receber uma tradução em português pela Editora Temporal

A história é como um rio. Não porque corre, não porque deságua, mas porque se divide como veias e fura a dureza da terra abrindo caminhos impensáveis até então. Escrever o rio da história, então, é tarefa das mais complexas: como apreender este influxo que passa? Como dar a ver não o que a água faz ou onde ela chega, mas o próprio caminho das águas?

Pois este é o desafio de Jean-Paul Alègre em Eu, Ota, rio de Hiroshima, ao tentar escrever, da perspectiva de um rio, os momentos anteriores à explosão da bomba atômica no Japão. E, o melhor, fazer isto como teatro, como dramaturgia, ou seja, uma escrita que é feita mais pro olho do que pro cérebro. Vamos comentar um pouco sobre este livro.

Eu, Ota, rio de Hiroshima é publicado pela editora Temporal, uma editora voltada para a publicação de textos teatrais e dramatúrgicos contemporâneos. Neste caso, recebi esta peça escrita em 2015 pelo fundador do Theatre du Fil D’Ariadne, na França. Na peça de estreia do autor em língua portuguesa, temos uma estrutura formada por três planos principais que montam um híbrido de gêneros que vai do uso de narradores, tal como o papel do corifeu na tragédia grega, passa pelas misturas medievais em que objetos, figuras históricas e inanimadas se tornam personagens, chegando até formatos mais contemporâneos de um teatro documental com leituras de cartas em cena.

No caso desta dramaturgia, temos Ota, a personagem que se assume como o rio Otagawa, aquele que atravessa a cidade de Hiroshima, vai apresentando pra gente o processo de construção da bomba atômica pelo governo americano; Em outro recorte, temos os presidentes americanos e seus ajudantes tratando da questão do desenvolvimento da bomba de forma tão tecnocrática que até Hannah Arendt poderia se assustar com a banalidade do mal desses sujeitos de poder; Ainda, em outro plano narrativo, um sujeito que vive em dificuldades financeiras troca cartas com a irmã que está morando na casa de um tio em Hiroshima sem saber das tramas da história que são tecidas enquanto suas vidas passam.

Edição lindíssima da Editora Temporal

O mais interessante do texto, a meu ver, está justamente na forma como optei por abri-lo: na perspectiva de se pensar o tempo moderno e contemporâneo como essa espécie de rio de história. Enquanto isso, diante deste rio que se acelera, Ota busca furar essas estruturas:

Percebe, amigo, que no grande rio da história
dos homens as coisas se aceleram?
“Mas eu permaneço calmo.
Continuo no meu papel de ser rio.
Quando minhas águas brancas e verdes da
montanha onde nasci cessam de correr em
direção ao mar, eu recomeço.”

O rio, então, como este fluxo ininterrupto, é talvez o único capaz de ver as vidas para além dos indivíduos, de ver as dores para além das construções individuais e poder mensurar o impacto da bomba, tanto na dor dos corpos de seus indivíduos, quanto no que isso diz respeito à própria história da humanidade.

O rio é uma espécie de consciência universal, mais do que natural, porque não é pacifista, não visa a reparação de um direito humano, mas repara num tempo em que essas palavras parecem absurdas: em um rio de um milhão de anos, o que é a paz se não uma eternidade interrompida pelos homens? Ainda assim, e talvez este seja o grande mérito de Alègre, é preciso que se escreva, desenhe, fotografe, e ilumine o que significa na trajetória civilizatória que vivemos a explosão de uma bomba como esta que dizima a cidade, as ruas, as estações de trem, as cartas, as esperanças, as beiras dos rios.


Para isso, Alègre busca a missão fracassada desde já de refazer o instante de destruição da bomba de dentro de um teatro. Diante da narração, por rubrica, ainda uma atenção ao dizer “este clarão precisa ser violento, mas sem agredir aos espectadores. Estamos no teatro” para, em seguida, dar à Ota as palavras que só ela – porque este rio, aqui, é ela – pode ver e que só ela pode contar:

Eu vi o clarão.
Vi o momento em que uma calma manhã de verão virou noite.
Vi as pacientes construções dos homens desaparecerem em uma fração de segundo.
Vi os corpos delicados de crianças se transformarem em largas gotas de chuva negra
Eu vi o impossível.

Eu vi o indizível.”

Um relato, talvez, da única testemunha que, diante da destruição, tinha a missão de mostrar para a humanidade que é preciso seguir.

Compre o livro aqui!

Related posts

Coisas óbvias sobre o amor: chega ao fim a duologia Laranja-Forte, de Elayne Baeta

“O Voo das Libélulas e outros contos inflamáveis”, de Kênia Marangão: quando o fantástico encontra o mais brutal da realidade

O gótico contemporâneo de Lúcio Reis Filho em “Lupedan: um mundo chamado Ego”