Feras de Lugar Nenhum, Uzodinma Iweala: infância, milícia, construção e ruína

Caetano Veloso escreveu na canção Fora da Ordem um grande retrato das infâncias destruídas a partir da metáfora da arquitetura urbana: “aqui tudo parece que é construção e já é ruína”. Cabe lembrar que nenhuma ruína é acidental, afinal, em nosso mundo, a ruína, faz parte de todo projeto de construção. E se ampliarmos isto, a ruína não é parte da construção de uma civilização, mas sua própria construção: construção e ruína como faces do mesmo evento.

Lendo o livro Feras de Lugar Nenhum, do escritor nigeriano Uzodinma Iweala, eu cheguei a uma conclusão: toda milícia é construção na ruína, construída de ruína e construção com a ruína. É NA ruína porque ela se baseia numa ideia de que aquilo já foi algo bom um dia pode ser trazido de volta. A milícia depende da ruína pra se impor; Ela é construção DE ruína porque, assim que se instala, em pouco tempo espalha seus tentáculos, muitas vezes se tornando (quase) irreversível. É quase um monopólio da ruína; E ela é construção COM a ruína porque quem vive na ruína, muitas vezes, encontra como única saída se aliar, se juntar e participar da milícia, ou da ruína.

Feras de Lugar Nenhum conta a história do menino Agu, uma criança que tem sua aldeia invadida por uma milícia, após a destituição do governo e acaba se juntando a essa milícia pra tentar sobreviver. Afastada da família, a milícia acolhe o menino e faz dele um braço seu. Agu é espancado por um outro menino de sua idade, espécie de espelho dessa violência, e passa a ter de conviver com os maiores horrores da guerra.

O autor publicação esse livro esse 2006 quando só tinha 23 anos e virou um fenômeno pela brutalidade da narrativa e pela força com que narra suas histórias. A própria descrição da perspectiva da criança de uma simplicidade dura e profunda, vai dando pra gente um pano de fundo de que é viver uma guerra. E mais, do que é viver dentro de uma guerra. E é interessante porque o Iweala mostra como a guerra não é uma forma de resolver as coisas, mas justamente um problema para mudar as coisas. Ele aponta que é “mais difícil consertar qualquer coisa durante a guerra”.

A estrutura do livro se constrói na desmontagem de mundo vivido na memória de Agu, nos momentos em que em meio a guerra ele tenta reconstruir o seu passado, assim como na formação de uma espécie de um novo vocabulário pra vida: o vocabulário de um soldado diante da guerra. E ele vai recebendo uma série de instruções que vão compondo esse novo vocabulário como:

Não pense, diz o tenente. Dei acontecer. No momento em que a gente pára pra pensar, a cabeça da gente fica que nem a parte de dentro de uma fruta podre. (…) Está vendo esse homem, diz o Comandante, olha pra ele. Ele não é nem mesmo um homem.


Como isso, ele precisa construir a sua vida, ou seja, aquilo que ele considera quem é, a partir de uma nova composição de informações. Antes, ele era um menino que dançava e ia a igreja, agora ele segura uma arma e precisa matar friamente pessoas. Agora, ele precisa prestar contas de seus atos com uma ética ainda em gestação: “Não quero matar ninguém hoje. Não quero matar ninguém nunca”. O que cria racionalizações cruéis como: “Não sou um menino mau. Não sou um menino mau. Sou um soldado que mata não é mau.”

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Até que formula, dentro de seu universo, o papel dos soldados em uma guerra. Embora aquilo lhe garanta o poder das armas e o controle do corpo de diversas pessoas, ele começa a perceber que é vivencia uma experiencia de mundo em que tudo que lhe é direto, a família, os afetos, as escolhas são retirados:

sei agora que ser soldado é ser fraco e não forte, é não ter comida e não poder comer o que a gente quer, é também ter que fazer coisas que a gente não quer e não poder fazer as coisas que a gente quer como eles fazem nos filmes.

E nisto o menino Agu acompanha pelas estradas da Nigéria este grupo de milicianos, sofrendo violências, estupros, e assistindo um menino da mesma idade que a sua perder a capacidade de falar, seguir as orientações de soldado como se fossem atividades mecânicas. Neste momento, o escritor consegue capturar uma das principais formas da guerra se impor: a repetição. A violência, como gesto simbólico, sempre se justifica de alguma forma, mas a repetição dos mesmos gestos e ações diariamente transpostas para uma linguagem que também se repete, acaba por se tornar o trunfo de Iweala para nos dar a ver esta vida de Agu que é, simultaneamente, construção e ruína, num a trajetória sem destino:

“Vamos para onde vamos e chegaremos quando chegarmos”

Até que em determinado momento, Agu é levado para dentro de uma escola. Ali,Uzodinma Iweala monta uma das lindas metáforas para fazer a gente entender como se faz a passagem da vida daqueles indivíduos para a guerra num contexto mais amplo. Agu observa a sala de aula repleta de mapas e se vê, pela primeira vez, “dentro do mundo”. Ali ele é capaz de se projetar enquanto figura que habita o interior daqueles mapas e se move por eles:

Minha cabeça começa a girar pra esse lado e aquele lado porque sinto como se estivesse dentro do mundo e estou vendo como devem ser as coisas pelo lado de dentro ao invés do lado de fora.

Entretanto, a força das milícias faz com que, numa projeção do poema de João Cabral em que o amor consome tudo, tudo seja consumido por essa lógica:

As balas comem tudo, folhas, árvores, chão, pessoas – comem tudo – fazendo as pessoas sangrarem por todos os lados e o sangue toma conta do mato. (…)As coisas feitas de vidro são belas e bonitas, mas parecem mortas mesmo tendo vida. Tudo aqui parece morto mesmo estando vivo.(…)A gente está sempre se mexendo porque é isso que estamos fazendo, vendo todas as coisas que passam por nós. Casas, árvores, escolas, carros.

É a vida que fica pra trás, ruína de algo mal se começou a construir. Um país de infância. Uma vida de infância. E as milícias como agenciadores de toda destruição.

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