A poeta carioca Claudia Roquette-Pinto, nascida, em 1963, tem uma das poesias contemporâneas mais instigantes. Formada em tradução literária pela PUC-RJ e depois diretora por cinco anos do jornal cultural Verve, ela já teve cinco livros de poesia publicados: Os Dias Gagos (Edição da autora, RJ,1991); Saxífraga (Editora Salamandra, RJ, 1993); Zona de Sombra (Editora 7 letras, RJ, 1997); Corola (Ateliê Editorial, SP, 2001 – Prêmio Jabuti de Poesia/2002) e Margem de Manobra (Editora Aeroplano, 2005). Um dos expoentes da poesia da década de 90 no Brasil, ela já explorou, com o em Corola, premiado com o Prêmio Jabuti, as flores em todas as suas minúcias, inclusive na sua capacidade de se materializar metalinguisticamente no fazer poético. Em Margem de Manobra, por exemplo, seus poemas são mais crus, mais violentos e, ao nos ver acuados pelas instâncias da vida, busca uma área de escape, nem que ela se dê apenas na linguagem.
O NotaTerapia separou os melhores poemas da poeta. Confira:
SÍTIO
O morro está pegando fogo.
O ar incômodo, grosso,
faz do menor movimento um esforço,
como andar sob outra atmosfera,
entre panos úmidos, mudos,
num caldo sujo de claras em neve.
Os carros, no viaduto,
engatam sua centopeia:
olhos acesos, suor de diesel,
ruído motor, desespero surdo.
O sol devia estar se pondo, agora
— mas como confirmar sua trajetória
debaixo desta cúpula de pó,
este céu invertido?
Olhar o mar não traz nenhum consolo
(se ele é um cachorro imenso, trêmulo,
vomitando uma espuma de bile,
e vem acabar de morrer na nossa porta).
Uma penugem antagonista
deitou nas folhas dos crisântemos
e vai escurecendo, dia a dia,
os olhos das margaridas,
o coração das rosas.
De madrugada,
muda na caixa refrigerada,
a carga de agulhas cai queimando
tímpanos, pálpebras:
O menino brincando na varanda.
Dizem que ele não percebeu.
De que outro modo poderia ainda
ter virado o rosto: — Pai!
acho que um bicho me mordeu! assim
que a bala varou sua cabeça?
O DIA INTEIRO
O dia inteiro perseguindo uma idéia:
vagalumes tontos contra a teia
das especulações, e nenhuma
floração, nem ao menos
um botão incipiente
no recorte da janela
empresta foco ao hipotético jardim.
Longe daqui, de mim
(mais para dentro)
desço no poço de silêncio
que em gerúndio vara madrugadas
ora branco (como lábios de espanto)
ora negro (como cego, como
medo atado à garganta)
segura apenas por um fio, frágil e físsil,
ínfimo ao infinito,
mínimo onde o superlativo esbarra
e é tudo de que disponho
até dispensar o sonho de um chão provável
até que meus pés se cravem
no rosto desta última flor.
POR QUE VOCÊ ME ABANDONA
à poesia
Por que você me abandona
no vértice da vertigem
quando a chuva cai (um Magritte)
sobre rosas que desistiram?
Por que novamente me perco
entre hortênsias, no aclive,
mais altas que homens, mais vivas
que o Exército de Terracota?
Sem você eu caminho no plano,
tudo escorre
— há um silêncio aturdido
uma cota do que morre
por dentro daquilo que brota.
Sem a sua luz, o que me resta?
Palmilhar às cegas
um quarto de veludo
onde o espelho, mudo, assiste
à fuga do que reflete.
Na margem
No seu rosto algumas mulheres mergulham desabaladamente.
Outras, mais cautelosas, já tendo apanhado da vida, chegam pisando de lado, aproximam-se devagar. Começam por molhar os dedos, depois, com um olhar que se quer
distraído, dispõem-se a banhar os pés (são estas, talvez, as que correm maior perigo – pois, ao senti-las reticentes, suas águas se temperam de encantos luminosos, flutuantes, evanescentes, e em breve se estendem, em pequenas ondas graciosas, ao redor dos tornozelos. Quando dão por elas – pronto!- já estão mergulhadas até o pescoço).
Outras, ainda, (as tolas) acreditam possuir alguma qualidade especial que as tornará necessárias ao mistério das suas profundezas. Como se os seus corpos, ao se banharem naquele líquido, estivessem, por contraste, oferecendo a ele alguma coisa de útil.
Pura ilusão. Não percebem, as desavisadas, as pretensiosas, que, no contato íntimo da sua água com a pele, ela nunca, propriamente, as penetra. Envolve, talvez. Adula, acaricia. Aquece. Recebe, torna macia e cheia de luz – mas nunca, nunca a ela se mistura.
Aos seus olhos, portanto, cada mulher não passa de um corpo, massa sólida a se deslocar de um lado para o outro, com maior graça ou menor grau de desconforto, mas ainda e apenas isso: um objeto fugidio, que nada tira nem em nada lhe acrescenta – um acaso do movimento que, meramente, se dá.
Não eu. Eu não sou como nenhuma _ nem uma única _ dessas tristes mulheres.
Conheço e palmilho, a cada dia, a completa extensão da sua orla. Percorro, de pés descalços, sua órbita, tropeçando em pequenas pedras, cortando a pele no espinhal. Há ocasiões em que sangro profusamente, e é preciso que pare e me sente para descansar em alguma pedra da região desértica que circunda o seu perímetro. Nestas vezes, tenho oportunidade de observar de perto o banho das outras mulheres: seus movimentos, a princípio aéreos e leves; tremeluzindo no rosto, a surpresa e a delícia iniciais; a seguir, o despontar do desconforto, e nas sobrancelhas franzidas, a breve desconfiança da promessa de saciedade que nunca se realiza. E, logo, ao constatarem a perda do próprio reflexo, os músculos que se retesam, os esgares aterrorizantes, a tentativa de fuga entre grunhidos – apenas para, no fim, o corpo, como um menir, ser tragado, inerte, para a areia escura lá no fundo.
E é só por isso _ por ter assistido tantas e tantas vezes a este terrível espetáculo
que reúno em mim as forças para manter a disciplina: por maior que seja a sede, por mais que me deforme e arda no rosto esta máscara de barro ressecado (à noite, sonho com o bálsamo do seu úmido abraço), em suas águas não entrarei.
EM SARAJEVO
Na primeira foto ela ri,
selvagem,
e se mistura às amigas.
Um ano mais tarde,
posa com as mãos no colo,
coluna reta,
os pés cruzados pra trás.
Por dentro do uniforme pressente
uma mulher, a passos largos,
galgando as ruas de grandes cidades
— quem sabe no exterior.
Quando a vi, ali, distraída,
na escada do ônibus escolar,
nada me preparou para suas pernas abertas,
no meio a flor dilacerada
repetindo, entre as coxas,
o buraco da bala no peito:
um dois pontos insólito.
POEMA DE ANIVERSÁRIO
Sozinha — esplendidamente —
com a fotografia do engano
emoldurada em branco na parede
— paisagem a ser visitada todo santo dia;
com a lantejoula de prata
e a bolsa de madrepérola
pendendo, em plena tolice, do cabide
(filigranas para o adorno
dessa mulher-de-ninguém)
ela acorda entre os lençóis doloridos
por várias ausências, superpostas,
enquanto no sonho
o quase-toque das bocas
que o gongo do telefone
vem, habilmente, cortar.
Intrépida, exposta
ao vento e ao sol a pele
que, antes, o metal do penhor recobria.
Sozinha do lado de fora
(por dentro a própria mão sustenta,
ainda trêmulo,
o coração partido).
De Margem de Manobra (2005)
fósforo
ela segue dormindo. na borda do lençol o que a acalenta não são flores – senão aquelas mínimas rosas, pontas buliçosas de falanges a afiar seus instrumentos. sobre as cinzas do peito vão as pegadas, fósforo expondo ao ar noturno seu poder de ignição. o objetivo: o ermo pavilhão (esquerdo) do ouvido. onde então dispersariam, indo pesar alhures. nas pálpebras lilases, nas pétalas pisadas dos olhos, onde outro grupo de homúnculos labora. com minúcia, com agulhas de prata eles picam a superfície da pele pálida e baça e tão logo abertas às intempéries da luz. a cada golpe da agulha ela sabe , a massa corrente dos sonhos, a água caiada quase a ponto de talho se enruga e ralenta, e onde ali havia superfície fluida, ininterrupta, o que se coagula?
semi-cerrada na madrugada avulsa ela espera que alguma mão (a sua?) trêmula recolha toda a alva matéria e a explique.
Via Zona de sombra
Alma Corsária
De tanto sono me baixa uma lucidez estranha
em que a amendoeira pousa, luminosa, rara,
sob o fundo escuro da noite meio baça
(cilíndrica, roliça, bizarra)
seu vulto verde acocorado sobre a água
da piscina que não tem um pensamento.
Eu sinto inveja dessas águas anuladas
tão plácidas, idênticas ao próprio contorno
enquanto eu mesma nem sei onde começo,
quando acabo
e sofro o assédio de tudo o que me toca.
O mundo ora me engole, ora me vara
e tudo o que aproxima me desterra.
Chorei, ao ver no chão da cela,
o botão arrancado na contenda,
os óculos pisados do escritor judeu.
Tenho um coração que estala
com o peteleco das palavras de Clarice.
Numa vila miserável na Bahia,
um negro lindo, lindo,
dança ao som do corisco
_ e só me apaixono por casos perdidos,
homens com um quê de irremediável.
Mais de uma vez, imóvel, circunspecta,
vi abrir-se a máquina do mundo
sob a luz inclinada de Ipanema,
na Serra da Bocaina, no meio da floresta,
no alto da escada no topo do morro
por onde a moça seqüestrada vinha subindo
debaixo das lágrimas do pai.
Mais de uma vez meu coração trincou feito vidro
diante da página impressa,
e sempre que a palavra justa vem tirar seu mel
de dentro da copa do desespero de amor.
Acredito, do fundo das minhas células,
que uma amizade sincera “é o único modo de sair da solidão
que um espírito tem no corpo”.
Sim, eu acredito no corpo.
Por tudo isso é que eu me perco
em coisas que, nos outros,
são migalhas.
Por isso navego, sóbria, de olho seco,
as madrugadas.
Por isso ando pisando em brasas
até sobre as folhas de relva,
na trilha mais incerta e mais sozinha.
Mas se me perguntarem o que é um poeta
(Eu daria tudo o que era meu por nada),
eu digo.
O poeta é uma deformidade.
vão
palavra-persiana
poema-lucidez
imanta o ar fora do cômodo
das frases um outono
rente à janela
ouro tonto sobre a tarde derrubada
entrementes, entre dentes
(e quatro paredes)
tua boca ainda evoca
equívoca e pobre.
na penugem além da vidraça
os deuses-de-tudo-o-que-importa
cerram as pálpebras de cobre
Do livro: Zona de sombra
A SERRA
A serra elétrica das cigarras parou.
Tão de repente que o dia,
que ela partia em dois,
num estalo deitou ao chão suas metades.
Ficou só esta poça de silêncio,
indiferente,
e um tremor de alfinetes ardendo
dentro da caixa
de onde se abre o quem.
De Corola (2001)
Fontes:
http://www.jornaldepoesia.jor.br/crpinto.html
http://www.claudiaroquettepinto.com.br/poemas.html
http://www.algumapoesia.com.br/poesia2/poesianet177.htm
https://pontesoutras.wordpress.com/2019/12/03/traducoes-de-laiane-flores-de-um-poema-de-xel-ha-lopez-e-um-de-claudia-roquette-pinto/