Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura – o objeto – que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contentaria-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência.
Michel Seuphor
Água Viva é uma música. Ou uma pintura…de palavras. A personagem de Água Viva, uma pintora que quase não pinta, gerada do interior de uma autora – Clarice – uma escritora que não escreve, mas pinta suas figuras, como em quadros borrados de sombras. A obra, um grande relato íntimo de uma busca deste it essencial, de um pensamento que venha por detrás do pensamento, anterior a ele próprio e que seja capaz de atingir o âmago sempre vazio das coisas. Clarice, na busca de descobrir o que há de essência no humano. Ela (des)entende, mas das profundezas de suas questões, que o humano é como a pintura, traços que formam imagens que escapam. Uma das melhores obras da autora.
O NotaTerapia separou as 30 melhores frases da obra. Confira:
É também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo-a-corpo comigo mesma.
A causa é matéria do passado.
Sei que são primárias as minhas frases, escrevo com amor demais por elas e esse amor supre as faltas, mas amor demais prejudica os trabalhos.
A invenção do hoje é o meu único meio de instaurar o futuro.
Quero escrever-te como quem aprende. Fotografo cada instante, aprofundo as palavras como se pintasse, mais do que um objeto, a sua sombra.
Eu via e tremeluzente como os instantes, acendo-me e me apago, acendo e apago, acendo e apago. Só que aquilo que capto em mim tem, quando está sendo agora transposto em escrita, o desespero das palavras ocuparem mais instantes que um relance de olhar. Mais que um instante, quero seu fluxo.
Só pegarei inutilmente uma sombra que não ocupa lugar no espaço, e o que apenas importa é o dardo.
Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca. E tudo isso ganhei ao deixar de te amar.
Quem me acompanha que me acompanhe: a caminhada é longa, é sofrida mas é vivida.
Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra.
Ouve apenas superficialmente o que digo e da falta de sentido nascerá um sentido como de mim nasce inexplicavelmente vida alta e leve.
Minha pequena cabeça tão limitada estala ao pensar em alguma coisa que não começa e não termina – porque assim é o eterno. Felizmente esse sentimento dura pouco porque eu não aguento a demora a se permanecesse levaria ao desvario. Mas a cabeça também estala ao imaginar o contrário: alguma coisa que tivesse começado – pois onde começaria? E que terminasse – mas o que viria depois de terminar? Como vês és-me impossível aprofundar e apossar-me da vida, ela é aérea, é o meu leve hálito. Mas bem sei o que quero aqui: quero o inconcluso.
Escrevo-te porque não me entendo.
Atrás do pensamento não há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento. Nesse terreno do é-se sou puro êxtase cristalino. É-se. Sou-me. Tu te és.
Depois de um certo tempo, cada um é responsável pela cara que tem.
O que estou te escrevendo não é para se ler – é para se ser.
Por que é que as coisas um instante antes de acontecerem parecem já ter acontecido? É uma questão de simultaneidade de tempo.
O erotismo próprio do que é vivo está espalhado pelo ar, no mar, nas plantas, em nós, espalhado na veemência de minha voz, eu te escrevo com minha voz.
Não humanizo bicho porque é ofensa – há que respeitar a natureza – eu é que me animalizo. Não é difícil e vem simplesmente. É só não lutar contra e é só entregar-se.
Para te escrever eu antes me perfumo toda.
Que estou eu fazendo ao te escrever? Estou tentando fotografar o perfume.
Escrevo-te esse fac-simile de livro, o livro de quem não sabe escrever; mas é que no domínio mais leve da fala quase não sei falar. Sobretudo falar por escrito.
Estou cansada. Meu cansaço vem muito porque sou uma pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo.
Quero na música e no que te escrevo e no que pinto, quero traços geométricos que se cruzam no ar e formam uma desarmonia que eu entendo. É puro it.
Eu pinto um “isto”. E escrevo com “isto” – é tudo o que posso.
Vou explicar: na pintura como na escritura procuro ver estritamente no momento em que vejo – e não ver através da memória de ter visto em um instante passado.
Ando na sombra, nesse lugar onde tantas coisas acontecem.
Sim, o que te escrevo não é de ninguém. E essa liberdade de ninguém é muito perigosa. É como o infinito que tem cor de ar.
Ah, se eu sei que era assim eu não nascia. Ah se eu sei eu não nascia.
A minha única salvação é a alegria. Uma alegria atonal dentro do it essencial. Não faz sentido? Pois tem que fazer. Porque é cruel demais saber que a vida é única e que não temos como garantia senão a fé em trevas – porque é cruel demais, então respondo com a pureza de uma alegria indomável. Recuso-me a ficar triste.
Estou sendo alegre neste mesmo instante porque me recuso a ser vencida: então eu amo. Como resposta. Amor impessoal, amor ir, é alegria: mesmo o amor que não dá certo, mesmo o amor que termina. E a minha própria morte e a dos que amamos tem que ser alegre, não sei ainda como, mas tem que ser. Viver é isto: a alegria do it.
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