Penhascos alaranjados recortam as areias e contemplam as ondas vindas do mar. O cenário é idílico, doce e poético para férias de verão. Aquela grandiosa massa de pedra é, na verdade, parte da costa britânica, a famosa costa jurássica, um patrimônio da Humanidade com 185 milhões de anos. É nesta região, a de Dorset, no Reino Unido, que se estabelece a cidade fictícia Broadchurch, que dá nome à série policial de Chris Chibnall. E é também nesta praia e cenário delicados onde um garoto vai aparecer morto nas areias e iniciar a investigação da série na 1a temporada.
Agora, no dia 27 de fevereiro, a série estreou a sua 3a e última temporada, com 8 episódios. O ponto forte desta trilogia é o talento de Chibnall para escrever uma boa história. Acompanhamos os detetives Ellie Miller e Alec Hardy na investigação da morte do garoto Danny Latimer na 1a temporada, para enfrentarmos o julgamento na 2a temporada mais a investigação de outro caso, os das meninas Pippa e Lisa. Em vez de ser um caso por episódio, Chibnall permite que o espectador mergulhe perigosamente nos sentimentos de cada um dos personagens. Somos comandados por Miller e Hardy, mas nos vemos à mercê das dúvidas e dos sofrimentos entre vítimas e criminosos.
Broadchurch é um grande teste emocional. Além de ser uma boa história policial, onde acompanhamos cada suspeito e cada evidência, onde podemos criar teorias e tentar desvendar junto aos detetives, a experiência mais forte é acompanhar o drama dos personagens. Alec Hardy é um detetive que poderia ser o fácil estereótipo do personagem perturbado por um passado e mal-humorado simplesmente porque ele quer ser assim, como já vimos em tantos anti-heróis por aí. Contudo, ele é muito mais do que isso. O roteiro de Chibnall revela a sensibilidade de Hardy, o peso doloroso de carregar um caso de infanticídio não resolvido, a ausência da família e o único fio de esperança, que é a amizade com Miller. Ele acaba por ser um herói complexo, com o qual o espectador passa a se relacionar com profundidade, pois no fim apenas nós testemunhamos como tudo para ele é doloroso e como ele se sente derrotado em relação à própria vida.
Ellie Miller, de início, é uma personagem doce, e parece ser o estereótipo criado às personagens femininas para preservar o mundo das emoções e da sensibilidade, características que acreditam pertencer apenas às mulheres. Porém, mais uma vez, Chibnall faz de Miller uma personagem feminina forte, com suas vulnerabilidades humanas, e principalmente, não tem receio de mostrar que a raiva pode ser um sentimento pertencente à mulher. Quantas vezes vemos mulheres com raiva na televisão ou no cinema? Logo a raiva é dada como um sentimento histérico, sem razão alguma. Se o personagem masculino, porém, apresenta essa raiva, ele é enaltecido. Assim, Miller é essa força da natureza que engrandece Broadchurch. Ela vê o melhor nos outros, mas logo cresce como detetive e passa a saber suspeitar, a dar chance à dúvida. Enquanto nativa de Broadchurch, durante a investigação, ela é obrigada a pressionar as pessoas com quem ela cresceu, a duvidar e a ver suas falhas. E, na 2a temporada, passa pelo grande teste, junto ao Hardy, de ver o trabalho de investigação com o qual se empenharam tanto ser posto em dúvida também.
Além da excelente construção de personagem pelo roteirista, Ellie Miller e Alec Hardy exercem um fascínio por conta das brilhantes atuações de Olivia Colman e David Tennant. Logo na primeira cena, Olivia encanta por saber conduzir a sua personagem de forma humana e doce. A emoção que ela expõe, enquanto atriz, é fundamental para que o espectador entenda o peso da investigação do menino Danny: estamos vendo tudo pelos olhos e pela emoção da Ellie, pois o seu filho era melhor amigo de Danny. Houve cenas em que não era necessário chorar, porém a situação e o roteiro são tão fortes que Olivia conduzia a cena com independência. Inclusive, Ellie foi criada para ser interpretada por ela. E, de fato, é impossível vê-la sem a atuação de Olivia, consagrada por 2 prêmios BAFTA, um deles por sua performance na série. O trabalho de Olivia tem crescido muito por conta do sucesso de Broadchurch, com séries e filmes premiados em 2016 como The Night Manager, Fleabag, Flowers e o filme The Lobster, enredos que vão do drama à comédia, mostrando o quanto Olivia pode ser versátil.
O desempenho de David Tennant como Alec Hardy é igualmente brilhante. Para compreender o detetive, é preciso ser bem observador e constatar a nuance entre as expressões de David. Podemos estar acostumados a vê-lo pela leveza do 10th Doctor em Doctor Who, pelos seus papéis excelentes em peças de Shakespeare ou mesmo o vilão Kilgrave em Jessica Jones, mas aqui David concede muita humanidade ao Hardy, sentimos que ele, de fato, existe. Acaba por se tornar difícil juntar a imagem do ator ao personagem, pois Hardy é esta figura taciturna, que carrega e esconde todas as suas dores, oculta a sua sensibilidade e se sacrifica pelos outros. Assim, a grande qualidade de Broadchurch reside nas mãos de Olivia Colman e David Tennant.
O tema da série, o infanticídio, é tratado com cuidado e maestria, mas não é o único tema. O casamento, a complexidade das relações, a confiança no outro, a insegurança em carregar a responsabilidade por tentar explicar crimes terríveis. E, agora na 3a e última temporada, três anos se passaram e vamos acompanhar Miller e Hardy investigando um caso de estupro. Com pesquisas de três anos realizadas com grupos de apoio em Dorset e investigadores que trabalham na área, Chibnall promete uma última temporada que retrate bem o drama da vítima. E se pensarmos, é algo necessário entre os seriados, que muitas vezes usam o estupro apenas como pano de fundo em mais um caso ou nunca dão voz à vítima. Por isso, Broadchurch é uma reunião de todos esses temas, conseguindo criar quase uma sinfonia melancólica e realista sobre a vida.
Seguindo isso, Broadchurch é uma série policial rara. Com uma fotografia e paleta de cores extremamente cuidadosas, que falam muito pelo estado emocional dos personagens, ela surpreende por se destacar em seu gênero televisivo. A ênfase no cenário belo e a profundidade do drama vivenciado pelos personagens são contrastes enormes, mas que encontram um equilíbrio na bela produção da série. Chibnall, o roteirista, se inspirou bastante nos livros do autor inglês Thomas Hardy, que escreveu novelas inseridas no Romantismo, no século XIX. Assim como na escola literária a Natureza traça um diálogo com as emoções humanas representando-as, a série gosta de explorar as cores do ambiente: o azul melancólico dos céus pertence ao Hardy, enquanto o laranja quente e vivo é de Ellie. Cores que parecem exercer um contraste, mas que nos cenários do penhasco alaranjado e das ondas azuladas, convivem perfeitamente.
Há vários momentos em que o Hardy contempla o mar do alto de um penhasco. Quase como as pinturas românticas de Caspar David Friedrich. Porém, enquanto na pintura o homem surge como aquele que domina a natureza e a contempla apenas de longe, Hardy se mistura totalmente à Natureza. Com seus problemas de saúde, o personagem olha para ela como quem pensa sobre a vida e a morte, e ele se recorta no cenário apenas como mais um homem frágil diante da dimensão da Natureza. Ela é mais um personagem da série, e por isso a fotografia tem grande importância: em meio aos crimes, ela se preserva como um belo doloroso, que muitas vezes fala pelas emoções dos personagens.
O figurino também é relevante, pois ele parece, à primeira vista, tão simples quanto as roupas que vestimos diariamente. E é este o objetivo: vemos personagens realistas e imperfeitos como nós, com pouca maquiagem e vestes simples. A jaqueta laranja de Ellie é o grande símbolo de sua personalidade viva, a qual ela precisa lutar para preservar em meio a todo o caos das investigações e da desilusão com a própria cidade. Alec carrega elementos azuis que denotam a sua melancolia. Quando Ellie veste roupas azuis, na série, é claramente o instante em que ela adentra no universo de Hardy, descobrindo mais sobre seu passado. Nas fotos promocionais da próxima temporada, Ellie usa mais roupas azuis, e isso faz pensar se ela terá mais proximidade com Hardy, se a amizade entre eles vai se aprofundar, e o que os tons frios falam pela sua personalidade.
Esse trabalho na cor do figurino chama a atenção porque a série pega, de início, as características que normalmente as ficções concedem aos seus personagens: se é mulher, ela é o lado sensível e com cores mais quentes; se é homem, ele é a racionalidade, a melancolia e os tons frios. Por muito tempo, a racionalidade já foi dada como atributo natural masculino, o que sabemos que não é verdade. A ciência, a melancolia e o conhecimento eram direitos exclusivos do homem. Para a mulher, eram reservadas a leveza e a sensibilidade. O que Broadchurch faz, no roteiro, é algo fantástico: coloca seus personagens nesta zona, logo no início, para depois desconstruí-los. Hardy é emotivo, tem rompantes de raiva e choro pelas vítimas, e admite que, por isso, não conseguiria conduzir uma investigação, na 2a temporada. O que ele faz? Pede ajuda à Ellie. E a personagem assume a raiva e a racionalidade, expõe a melancolia, mas com a peculiaridade das próprias vivências. Ou seja, não há, em Broadchurch, tentativas de tornar um personagem mais importante que o outro: Hardy e Miller são colunas que se erguem igualmente sustentando Broadchurch.
E ainda é preciso destacar a qualidade da trilha sonora. Ela opera junto com as cores e a fotografia. Da mesma forma que essas estabelecem um cenário que fala pelos personagens, a trilha é como uma voz da cidade: em alguns momentos é possível ouvir as ondas misturadas ao piano, ao toque eletrônico e ao violino, mesmo que não tenha praia alguma na cena e seja em ambiente fechado. As ondas, o peso da Natureza continua como parte da vida daqueles personagens. E a trilha de Ólafur Arnalds compõe muito bem todo o trabalho sinestésico da série.
Sendo assim, a série Broadchurch é algo que precisa ser visto. O gênero policial tem se destacado entre as últimas produções europeias, se diferenciando do modelo americano que explora um caso por semana. Para quem prefere acompanhar um caso por toda uma temporada, ver um desenvolvimento maior da personalidade dos protagonistas, Broadchurch é uma ótima opção, e mesmo um dos maiores exemplos desse novo segmento no gênero. E ainda é uma história tão humana que ser espectador dela, fazer parte da vida de Ellie Miller e Alec Hardy, é uma experiência singular semelhante às jornadas do herói, com personagens que se tornam próximos e amados.
A série é exibida no Brasil pelo canal +Globosat, está disponível no Now da Net, em torrent e online. A 3a e última temporada estreia dia 27 de fevereiro, segunda-feira, 9pm (18h no horário de Brasília) no canal ITV, em UK.
Se tiver interesse em ler as proximidades da série com os livros de Thomas Hardy, o tumblr da Penfairy apresenta algumas análises (com spoilers) aqui aqui aqui aqui aqui e aqui (sugestões de leitura). Porém, este post aqui explica em geral as influências do autor na série e quem foi Thomas Hardy, que infelizmente não é tão conhecido assim no Brasil, com poucas traduções. Os livros tomados como referência pela série, segundo a autora do tumblr que pesquisa o trabalho de Thomas Hardy há alguns anos, são Tess of the d’Urbervilles (importante para a 3a e última temporada) e Desperate remedies. Mas Chibnall se refere a alguns detalhes de outras obras, e principalmente apresenta uma atmosfera e cenário modernos da região de Wessex.
Saiba mais sobre o universo da Wessex de Thomas Hardy aqui na BBC News. E se quiser começar as leituras, a obra Tess of the d’Urbervilles (no original) está disponível gratuitamente no site da Amazon para Kindle.