O Sol é Para Todos, de Harper Lee: a gentileza da infância conta o racismo e a segregação

Existem livros que sobrevivem às mudanças do tempo, da conjuntura política e das convenções sociais. Não que sejam livros “atemporais”, no sentido de ignorar a importância do contexto em que foram escritos; mas é que se tornam obras primas que, em qualquer época, encantam, surpreendem e marcam seus leitores. Creio que este seja o caso de “O Sol é Para Todos”, de Harper Lee. O livro, que também foi adaptado para o cinema nos anos 60, é um clássico americano que, ambientado no sul dos Estados Unidos na década de 30, tem como pano de fundo as terríveis tensões raciais, o preconceito e a segregação se contrapondo à inocência e à gentileza da infância.

O romance conta a história de Scout, uma menina de 9 anos, Jem, seu irmão de 13 e Dill, um amigo que visita a cidade de Maycomb todos os verões. Na pequena e típica cidade sulista, os três fazem todas as coisas que as crianças geralmente fazem: brincam na rua, descumprem as ordens dos adultos e inventam mistérios que pretendem resolver com planos geniais e infalíveis que, geralmente, são qualquer coisa menos infalíveis. Pacata, Maycomb é uma cidade na qual todos se conhecem e, assim, classificam e enquadram as famílias em estereótipos que facilitam (mas nem sempre) a convivência. Narrado por Scout, com seu olhar afiado e a incrível capacidade de subverter tudo que é esperado de uma pequena dama, a história vai, aos poucos, sendo tecida com delicadeza e gentileza únicas, que somente os olhos infantis são capazes de tecer. Tudo corre tranquilamente até que Atticus, pai de Scout e Jem e advogado, é escolhido para representar a defesa de Tom Robinson.

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Esta poderia ser uma clássica história de tribunal que, convenhamos, ninguém faz melhor que os americanos – não fosse pelo fato de Tom Robinson ser negro, Atticus ser branco e a história se passar em meados de 1930 numa cidade do sul dos Estados Unidos. Apenas a ideia de um homem branco defendendo um homem negro era, para todos, absolutamente incômoda; ainda mais se este homem branco tivesse, de fato, interesse em defende-lo e garantir para ele um julgamento justo. Pela voz de Scout, vamos acompanhando as tentativas do pai de preparar os filhos para sobreviverem aos comentários que o caso suscita na cidade, numa incrível lição de como educar eticamente as crianças, e as reações preconceituosas, violentas e agressivas dos moradores de Maycomb contra Atticus, seus filhos e, claro, Tom Robinson e sua família. A narrativa de Scout, com a pureza e graciosidade das narrativas de crianças de 9 anos, é um contraponto belíssimo à brutalidade do racismo e a coexistência destes opostos é como um soco no estômago do leitor. Ela e Jem não entendem porque todos odeiam tanto seu pai e, conforme vai se desenrolando o julgamento, passam a questionar também as razões de tanto ódio pelos negros. A família conta com a ajuda de Calpurnia, uma negra que trabalha para eles e que é, desde o nascimento das crianças, fundamental para eles. Eles adoram Cal e ela os adora, e a relação deles é exatamente o que representa a possibilidade de o afeto e o cuidado serem mais fortes do que o preconceito – e representa, também, a relação de tensão e ambiguidade decorrente de suas tentativas de ir contra tudo aquilo que uma sociedade racista e segregacionista pensava.

É importante fazer menção ao título original do livro, To Kill a Mockingbird. O mockingbird, pássaro imitador, é um pássaro que, conforme explica Atticus para as crianças, vive apenas para cantar, imitando os sons ao seu redor, e alegrar as pessoas com seu belo canto. Por esta razão, mata-lo seria um pecado inexequível. A imagem que esta explicação suscita é, de diversas formas, o retrato perfeito deste livro: Tom Robinson, um pássaro imitador prestes a ser morto pela sociedade que lhe julga culpado independente de haver culpa ou não; Atticus, um pássaro imitador que tenta, todos os dias, ensinar seus filhos sobre ética e cuidado; Scout, uma pequena passarinha imitadora que, aos poucos, vai tendo seu olhar e sua ingenuidade assassinados por um mundo que, diferentemente do que esperam as crianças, é duro, hostil e, muitas vezes, injusto e sombrio.

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