Autora: Ana Miranda
Editora: Companhia das Letras
O barroco brasileiro parece ser o melhor período que reflete o pensamento de Glauber Rocha: “a terra é do homem, não é de Deus nem do Diabo.” O Brasil, e em especial a Bahia, vivia nesse momento uma das maiores antíteses: de um lado um ferrenho poder da igreja frente ao rei, no auge da inquisição, e de outro lado uma terra de absoluta devassidão, sexualidade liberada, excessos nas bebidas e nos prazeres. Tudo convivia em absoluta comunhão, em formas que só as dobras barrocas poderiam permitir. Entre todo esse movimento estava ele, Gregório de Matos, o Boca do Inferno, a personificação completa desse período barroco-brasileiro-baiano-religioso-político-sexual.
Boca do Inferno (1989) de Ana Miranda, considerado um dos 100 melhores livros brasileiros do século XX, conta a história da morte do Alcaide Teles por rivais políticos, entre eles Gonçalo Ravasco, sobrinho do Padre Antônio Vieira. Entre as investidas do governo Antonio de Souza para vingar o crime e as defesas da família Ravasco, alguns mediadores entre acusados e acusadores estava Gregório de Matos, libertário religioso e crítico a todos, nesse contexto, com sua língua ferina. Gregório automaticamente vira alvo do poder.
O livro, logo no começo, tenta mapear o ambiente do 1600 brasileiro. Para isso, expõe o que seria um clima geral:
Os homens, mesmo dentro da igreja, andavam armados de espadas e cotós limpos. Tudo naquela cidade dependia da força pessoal. (…) Não havia grandes assaltantes na Bahia, mas quase todos furtavam um pouquinho. (…) uma desonestidade implícita e constante fazia parte do procedimento das pessoas.
Em meio a isso estava Gregório de Mattos, com seu imenso apetite sexual e capacidade de subverter qualquer ordem: andava roto, de barba mal feita, cabelo desgrenhado, com um violão nas costas e camisa para fora das calças. Dormia com negras, brancas, índias, casadas e freiras. Tinha se envolvido com todas as prostitutas do lugar, inclusive tendo uma de “estimação”, Anica de Melo, que guardava esperanças de casar com o poeta. Algumas pessoas, ao conhecer sua fama, achavam que ele era negro. A verdade é que todos desconfiavam e tinham medo de Gregório, pois suas sátiras que rapidamente se espalhavam na Bahia eram lidas e cultuadas por todos com risadas e galhofas, justamente a única coisa que desestabilizava os governos: alguém que não lhes levasse a sério e não quisesse lhe fazer frente, somente debochar, sem pretensões. A grande acusação a Gregório era: “Pensa que o mundo está errado e querendo emenda-lo torna-o ainda mais vicioso.” Porém, a culpa, sentimento cristão, não percorria aquele homem.
Em meio aos casos de acusação de Antonio de Souza, o que faz Ana Miranda é nos abrir os olhos para um período de nosso país que muito tem a ver conosco. Tudo parece compartilhar o mesmo espaço, o mesmo tempo, os vícios e as virtudes estão expostas na rua, o que mostra um caráter brasileiro de não imaginar a casa, o ambiente íntimo, como um lugar fechado, mas como lugar de passagem. Tanto que o próprio Padre Antonio Vieira, grande homem, era mal visto por interceder em ambientes que não eram da igreja e isso, muitas vezes, lhe colocava até contra sua própria religião:
“Hoje em dia é assim: um moço sem pai, mal herdado da natureza, sem valor para seguir as armas, sem engenho para cursar as letras, (…) é desonesto? Vai governar. É honesto? Vai ser padre.”
Essa falta de devoção e inspiração para o cargo, acusa Vieira, é o que causa o malefício do difícil papel de estar na defesa das pessoas dentro de uma sociedade profundamente hierarquizada e injusta.
Assim, me parece, que tanto Vieira quanto Gregório, se tornam “bocas do inferno”, pois suas posições sempre fortes em relação a todo ambiente brasileiro da época, os colocam no papel de algozes dos algozes, entretanto com uma arma ainda mais forte e influente: a palavra. A boca, é preciso que se diga, é uma das mais violentas armas contra o poder. Talvez seja por isso que Antonio Candido, quando lança seu compendio de literatura brasileira deixa Gregório de Lado, afinal de contas, ele não tem sistema, não tem regras, não tem projeto, apenas uma espiral alucinada, cheia de dobras chamada de barroco. Um período que parece cada vez mais próximo do nosso XXI.