As Peças Faladas, de Peter Handke, consistem numa coletânea de quatro obras teatrais do autor publicadas a partir de 1965. Estão entre elas, Predição, Insulto ao Público, Auto-Acusação e Grito de Socorro. O sugestivo título Peças Faladas – escolhido pelo autor – se dá pelo fato de que nelas não há cenário, figurino, personagens, atores e sequer fato narrado. O que se vê são “oradores” e “oradoras” que falam os textos em direção à plateia, falas que são, quase sempre, sobre a materialidade da existência do momento teatral ou de uma situação de exposição ou reconhecimento de “coisas óbvias” como o lugar em que se está e as escolhas que a todo momento se faz. Leia mais aqui!
No teatro as coisas vos acontecerão como no teatro.
Cada dia será um dia como o outro.
Estas bordas do palco não representam o mundo. Estas bordas existem para nos basearmos em alguma coisa. Este mundo não é diferente dos seus. Vocês não são mais espectadores. Vocês são o assunto. O foco está em vocês. Vocês estão no fogo cruzado de nossas palavras.
Vocês não têm traços individuais. Vocês não têm fisionomias distintas. Aqui vocês não são indivíduos. Vocês não têm características. Vocês não tem destino. Vocês não têm história. Vocês não tem passado. Vocês não estão na lista de procurados. Vocês não têm experiência de vida. Aqui vocês tem a experiência do teatro. Vocês têm aquele algo mais. Vocês são espectadores.
Vocês não são uma ideia brilhante. Vocês são cansativos. Vocês não são um assunto agradável. Vocês são um erro dramatúrgico. Vocês não são verdadeiros como a vida. Vocês não são teatralmente eficazes. Vocês não nos levam a um outro mundo. Vocês não nos encantam. Vocês não nos deslumbram. Vocês não nos divertem fabulosamente. Vocês não são engraçados. Vocês não são animados. Vocês não têm truques nas suas mangas. Vocês não têm o dom para o teatro. Vocês não tem nada para dizer. Vocês não são convincentes. Vocês não estão nem aí. Vocês não nos ajudam a passar o tempo. Vocês não chegam a nos interessar. Vocês nos chateiam.
Vocês não precisam desse padrão agora. Vocês não estão assistindo a uma peça de teatro. Vocês são o ponto focal. Vocês estão no fogo cruzado. Vocês estão sendo inflamados. Vocês podem pegar fogo. Vocês não precisam de um padrão. Vocês são o padrão. Vocês têm de ser descobertos. Vocês são a descoberta da noite. Vocês nos inflamam. Nossas palavras pegam fogo no contato com vocês. De volta uma faísca lança-se sobre nós.
Essa peça é um prólogo. Ela não é um prólogo para uma outra peça, mas o prólogo do que vocês fizeram, do que vocês estão fazendo e do que vocês farão. Vocês foram o tema. Esta peça é o prólogo para o tema. Ela é o prólogo para suas práticas e costumes. Ela é o prólogo para suas ações. Ela é o prólogo para suas inatividades. Ela é o prólogo para vocês deitarem, sentarem, ficarem de pé, andarem. Ela é o prólogo para as brincadeiras e a seriedade de suas vidas. Ela é também o prólogo para as suas futuras idas ao teatro. Ela é também o prólogo para todos os outros prólogos. Esta peça pertence ao teatro do mundo.
Eu vim ao mundo.
Eu fui concebido. Eu fui gerado. Meus ossos se formaram. Eu nasci. Eu entrei no registro de nascimento. Eu cresci.
Eu me tornei objeto das frases. Eu me tornei o complemento das frases. Eu me tornei o objeto e o complemento da oração principal e da oração subordinada. Eu me tornei um movimento perpétuo de uma boca. Eu me tornei uma sequência de letras do alfabeto.
Eu não sou como eu fui. Eu não fui como eu deveria ter sido. Eu não me tornei o que eu deveria ter me tornado. EU não mantive minhas promessas.
Eu fui ao teatro. Eu escutei esta peça. Eu falei esta peça. E escrevi esta peça.
Edição: Peças Faladas, Peter Handke, Editora Perspectiva, 2015