Remição pela leitura: como Bolsonaro poderia reduzir sua pena com livros (mas provavelmente não vai)

Condenado por participação em uma tentativa de golpe de Estado, o ex-presidente Jair Bolsonaro — assim como os demais integrantes do chamado “núcleo duro” da articulação — poderá, se quiser, recorrer à leitura como instrumento de redução de pena. A possibilidade está prevista em um programa vigente nas unidades prisionais do Distrito Federal, que concede quatro dias de abatimento para cada obra literária lida e comprovada.

Mas há condições. Para aderir ao benefício, Bolsonaro e os demais réus precisariam solicitar autorização ao ministro Alexandre de Moraes, relator no Supremo Tribunal Federal do inquérito que levou às condenações. O precedente mais recente é o do ex-deputado Daniel Silveira: em setembro, Moraes autorizou a redução de 113 dias da pena de Silveira com base em atividades de leitura, estudo e trabalho realizadas no presídio de Magé (RJ), onde cumpre pena em regime semiaberto.

No Distrito Federal, a política de remição pela leitura segue uma lista de obras previamente aprovadas pela Secretaria de Educação, elaborada com exclusividade por professores de língua portuguesa da rede pública que atuam no programa. São vedados livros com conteúdos que incentivem violência ou práticas discriminatórias. Em contrapartida, há espaço para títulos que tratem de democracia, ditadura, racismo, identidade de gênero e distopias que exploram regimes totalitários — temas que, aliás, não deixam de dialogar, direta ou indiretamente, com o processo que levou Bolsonaro à prisão.

Atualmente, apenas os livros que constam nessa lista oficial garantem a redução da pena. Ainda assim, os réus têm a possibilidade de participar de clubes de leitura organizados dentro das próprias unidades prisionais. Esses grupos, uma vez autorizados judicialmente, podem propor novos títulos que, se aprovados, também se tornam elegíveis para o benefício.

Quais são os livros?

Esses são alguns dos títulos que constam na lista (você pode ler a lista completa clicando aqui)

  • “Os Miseráveis“, de Victor Hugo
  • O Processo“, de Franz Kafka
  • O Alienista“, de Machado de Assis
  • Alice No País das Maravilhas“, de Lewis Caroll
  • A autobiografia de Martin Luther King”, de Martin Luther King
  • “A cor do preconceito”, de Carmen Lúcia Campos e Sueli Carneiro
  • “A cor púrpura”, de Alice Walker
  • “Admirável mundo novo”, de Aldous Huxley
  • O Homem da Máscara de Ferro“, de Alexandre Dumas
  • “A revolução dos bichos”, de George Orwell
  • “Becos da memória”, de Conceição Evaristo
  • “Canção para ninar menino grande”, de Conceição Evaristo
  • “Cartas de uma menina presa”, de Débora Diniz
  • Ainda Estou Aqui“, de Marcelo Rubens Paiva
  • “Futuro ancestral”, de Ailton Krenak
  • “Guerra e paz”, de Liev Tolstói
  • “Incidente em Antares”, de Érico Veríssimo
  • “Malala: A Menina Que Queria Ir para a Escola”, de Adriana Carranca
  • Democracia“, de Philip Bunting
  • “Na minha pele”, de Lázaro Ramos
  • “Não verás país nenhum”, de Ignácio de Loyola Brandão
  • “O conto da aia”, de Margaret Atwood
  • “O perigo de uma história única”, de Chimamanda Ngozi Adichie
  • Crime e Castigo“, de Fiodor Dostoyevsky
  • “O príncipe”, de Nicolau Maquiavel
  • “O sol é para todos”, de Harper Lee
  • “Pequeno manual antirracista”, de Djamilla Ribeiro
  • “Presos que menstruam”, de Nana Queiroz
  • O Jardim Secreto“, de Frances Hodgson Burnett
  • “Tudo é rio”, de Carla Madeira
  • “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves
  • “Zumbi dos Palmares”, de Luiz Galdino
  • “1984”, de George Orwell
  • O Fantasma da Ópera“, de Gaston Leroux
  • “1968: o ano que não terminou”, de Zuenir Ventura

Como funciona a remissão de pena pela leitura?

A política de remição pela leitura no Distrito Federal não é nova — mas, nos últimos anos, tem crescido em alcance e adesão. Criada em 2018 com o nome “Ler Liberta”, a iniciativa tornou-se política pública permanente após a publicação de diretrizes nacionais pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2021. Desde então, passou a ser coordenada pela Secretaria de Educação do DF, em parceria com a Secretaria de Administração Penitenciária (Seape).

O funcionamento é simples, embora rigoroso. A participação dos detentos é voluntária e começa com uma inscrição. Depois disso, cada participante recebe um livro — e, junto com ele, um manual explicando como o programa funciona. O prazo para concluir a leitura é de 21 dias. Ao fim desse período, o leitor tem até 10 dias para entregar uma resenha sobre a obra. Essa produção textual passa por avaliação em três critérios: clareza, autoria (ou seja, se foi mesmo escrita pelo detento) e qualidade estética.

O programa no DF permite a leitura de até 11 livros por ano — o que significa, no máximo, 44 dias de redução de pena a cada doze meses. A regra local é ligeiramente mais restritiva que a nacional: de acordo com a resolução do CNJ, o teto seria de 12 livros e 48 dias por ano. A diferença se explica pelo fato de que o DF adapta a aplicação da política ao calendário letivo da rede pública, incluindo o recesso escolar.

O governo resume a proposta da seguinte maneira: “O Remição pela Leitura se reafirma como uma ferramenta transformadora no sistema prisional, promovendo leitura, desenvolvimento intelectual e redução de pena por meio da educação”, afirmou, em nota, a Secretaria de Administração Penitenciária.

A estrutura de aplicação também segue um modelo definido. Há um professor alocado em cada unidade prisional do DF, responsável pela parte operacional: empréstimos, devoluções e organização do acervo. Além disso, uma Comissão de Validação — composta por professores de língua portuguesa — avalia os relatórios entregues, trabalhando a partir do Centro de Ensino 01 (CED 01). Há ainda um supervisor e um coordenador pedagógico acompanhando o processo.

O número de livros lidos e resenhados por detentos do DF vem crescendo a cada ano. Os dados da Secretaria de Educação mostram isso com clareza:

  • 2021: 15.310 obras lidas
  • 2022: 17.103
  • 2023: 25.758
  • 2024: 29.077
  • 2025 (até agora): 27.571

Além do fornecimento oficial, há possibilidade de doações. Campanhas são realizadas anualmente, e os livros podem ser entregues nos postos do Na Hora. Também é permitido que advogados e visitantes levem exemplares às unidades durante os dias de visita.

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