“Flores Astrais”, de Marcelo Nery: uma saga familiar gótica rural mineira

A atmosfera opressiva de um casarão no interior de Minas Gerais serve de palco para “Flores Astrais” (Mondru), primeiro romance do autor Marcelo Nery. A obra, classificada pelo autor como “uma saga familiar gótica rural mineira”, acompanha o retorno de Tiago à fazenda de café da família após a morte do pai, forçando-o a confrontar o passado. O livro conta com paratextos de Jarid Arraes, Santiago Nazarian, Flavio Muniz e Laura Bacellar.

A trama se desenrola em 1980, quando Tiago Amaral Grandi, um jornalista gay de meia-idade, volta à Fazenda Grandi após uma ausência de vinte anos. Envolto por segredos, assombrações e o peso de um sobrenome que carrega séculos de história, ele precisa lidar não apenas com o legado do pai, Franco, mas também com traumas familiares não resolvidos, a presença inquietante da tia Augusta, uma prima idosa que conversa com bonecas e os resquícios do suicídio de sua mãe, Serena. A narrativa entrelaça passado e presente, revelando uma teia de intolerância, hierarquias raciais e dinâmicas de poder destrutivas. Como descreve a escritora Jarid Arraes: “O verdadeiro gótico se mostra na atmosfera rica em experiências sensoriais, nos segredos que se entranham entre móveis e corpos, e na herança psicológica que se recusa a morrer”.

“Flores Astrais” não dialoga apenas com o fantástico: é uma alegoria potente sobre a herança colonial brasileira. O historiador e jurista Flávio Muniz destaca que o romance “faz o Brasil olhar-se no espelho da própria decadência, revelando o que a elite tenta esconder sob vernizes de civilização, moral e fé”. Com personagens que oscilam entre o real e o espectral, Marcelo constrói uma crítica às estruturas sociais que perpetuam o sofrimento.

O processo de escrita, segundo o autor, envolveu a exploração de memórias pessoais e coletivas. “‘Flores Astrais’ nasce do encontro entre história, fé e trauma. Esses temas me escolhem há anos”, conta. A narrativa convida o leitor a refletir sobre as violências ocultas atrás de retratos de família, flertando com a estética de telenovela e minisséries: com uma história carregada de drama, mistério e uma boa dose calculada de kitsch. Marcelo Nery desenvolveu o livro ao longo de dois anos de pesquisa histórica e lapidação através de leituras críticas e sensíveis, explorando suas vivências pessoais de uma criança gay no interior. “É um livro que exigiu mineração — da terra, da família e de mim mesmo”, aponta.

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A bagagem multifacetada do autor, que transita entre a Ciência da Computação, o game design, o tarô e a docência, influencia diretamente sua abordagem narrativa: “Escrevo como quem investiga um mistério: método quando dá, intuição quando precisa”, explica. Suas influências vão desde clássicos como Agatha Christie e Edgar Allan Poe até a tradição oral mineira, “das histórias contadas em voz baixa, entre café e reza, nas noites embaladas por grilos”. Esta mistura resulta em um estilo poético e ao mesmo tempo direto, com uma camada de “tensão subterrânea, ironia e aconchego mineiro”, como ressalta o próprio Marcelo.

Os temas centrais — luto, religiosidade e preconceito — são tratados de forma psicológica e simbólica. A obra explora a homossexualidade, a espiritualidade, o racismo e o poder através de uma estrutura não linear que espelha o funcionamento da mente humana. “O passado não morre: ele se disfarça, mas continua assombrando”, afirma o autor.

Sobre o autor:

Marcelo Nery nasceu em Belo Horizonte, mas já atravessou muitas dimensões: da Ciência da Computação ao tarô, de professor universitário à criação de mundos virtuais.

Com formação em Ciência da Computação, foi professor universitário por 16 anos e coordenou o renomado curso de Jogos Digitais da PUC Minas. Transitou do universo acadêmico para o mercado criativo, atuando como designer de jogos de tabuleiro e, atualmente, como coordenador de game design na ARVORE Immersive Experiences, desenvolvendo projetos para empresas como Meta e Universal Studios.

Cresceu entre a capital e o interior, cercado por pastos, rios, carrinhos de rolimã e bambuzais. Desde pequeno encontrou na máquina de escrever o espaço para inventar histórias, quando o drama ainda era um hábito, não um talento. Aos dez anos integrou o júri do Concurso de Literatura Infantojuvenil João de Barro, onde a paixão pelos livros se firmou. Fora de época, com o coração em technicolor em um mundo que flerta com o streaming, virou a mais cafona (e romântica) da família. Hoje escreve como quem investiga um mistério e disseca sentimentos, como um bom escorpiano de 1978. “Flores Astrais” é seu primeiro romance.

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