A vida é um tatear do mundo. Das coisas, pessoas, dos passados. Henri Bergson escreveu uma obra chamada Matéria e Memória em que pensa o tempo como uma espiral, na medida em que a história não avança em linha reta, mas numa relação de forças centrífugas entre memória e esquecimento, uma batalha de matérias diante de uma luta de imagens que, por fim, formam aquilo que chamamos de história. Inventário de palavras (Oito e Meio), de Alice Casimiro Lopes é um livro exatamente sobre isso, mas toda essa história, nesse caso, se passa na intimidade de uma família.
Inventário de palavras, romance publicado por Alice Casimiro Lopes em 2025, autora que já venho acompanhando com bastante entusiasmo desde o livro anterior, também resenhado aqui (Vidas sem Margem) – obra a qual eu tenho bastante apreço. Dessa vez, Alice Casimiro Lopes mergulha na vida de uma família patriarcal que gira em torno de um homem, um velho que está prestes a morrer – em alguns momentos já morreu – e que deixou para trás cinco filhos, quatro oficiais – dois irmãos e duas irmãs – um bastardo e uma série de sequelas e histórias a serem reveladas e resolvidas.
Dentre os dois irmãos, uma briga de infância marcou a história definitivamente: enquanto brigavam por alguma bobagem, o pai incentivou os dois a uma luta física quando o irmão mais velho cegou o mais novo em um dos olhos. O sangue abundante, a demora em levá-lo ao médico e a negligência familiar foram determinantes para a cegueira parcial, o silêncio da família sobre o assunto e um trauma que atravessou a vida de todos.
No pai, a vergonha impediu-o de mencionar o caso e, inclusive, proibiu que se falasse do assunto em casa. Na mãe, uma benevolência com o irmão vítima, a quem podia cometer qualquer erro sem punição. No irmão mais velho, uma culpa que perseguia-o e fazia-o tentar buscar perdão onde quer que estivesse. No mais novo, uma liberdade para cometer erros pois se sabia perdoado de antemão.
Já entre as irmãs a disputa foi diferente: uma delas, a mais velha, possuía uma namorado negro, com quem já despertava problemas com o patriarca racista. O problema é que a mais nova não só seduziu seu namorado como engravidou dele. Seu pai, então, decidiu que a mais nova casaria com o homem que passou a viver com a mais nova em uma casa próxima à casa grande.
O filho perdido num aborto espontâneo reuniu as irmãs, mas a ferida continuou aberta, afinal, aquele homem passou a ser um pouco das duas, atravessando aquela história que também nunca foi finalizada.
Esta é a fábula do livro, potente história que poderia se filiar a outras de nossa literatura, principalmente dos grandes autores de origem árabe como Raduan Nassar e seu Lavoura Arcaica ou o gigante Milton Hatoum com o romance Dois Irmãos: a narrativa de uma família formada por um centro bastante fechado em que a próxima geração começa a se afastar do núcleo e perder aquilo que dá a liga enquanto unicidade: no caso do livro de Alice, o pai e a casa.
Leia também:Vidas sem Margens, de Alice Casimiro Lopes: a sensibilidade como matéria bruta da literatura
Entretanto, o que faz o Inventário das Palavras um livro único é a proposição de jogo formal proposto pela autora, uma verdadeira metamorfose das formas que nos dá a ver uma série de maneiras de nos contar essa história, de modo que temos perspectivas distintas não só de personagens, mas também das formas pelas quais essas personagens contam essas histórias.
Um dos primeiros capítulos, por exemplo, inclusive um dos mais fortes do livro, é narrado pelo genro negro do velho. Neste momento, em que ainda sabemos muito pouco da história, nos é relatada uma série de histórias de racismo deste homem que conta histórias para outro enquanto enche a cara no bar:
(…) posso ser do jeito que quiser, não é? Sendo nada, deixo de ser o genro do velho, o preto genro do velho, o preto a serviço do velho. Não acredita? Pois é assim que me sinto. Com o velho nas últimas a sensação aumenta. Vou ser livre. A merda é que a liberdade doi. Não consigo parar de sofrer por ele estar morrendo. Melhor beber.
Trata-se de uma relação particularmente triste, complexa, ambivalente, na medida em que, apesar de se ver diante da liberdade, o sujeito teve sua identidade vinculada a vida inteira ao redor deste velho e, agora, frente à sua morte, como construir outra do zero neste momento da vida? Alice traz este momento crítico com sensibilidade.
Talvez o capítulo mais bonito do livro seja aquele em que Alice emule, no melhor estilo Jorge Luis Borges, a Carta ao Pai de Kafka, em que uma das filhas do patriarca escreve ao pai. Ela parte da mesma pergunta de Kafka: “Você me perguntou recentemente por que eu afirmo ter medo de você.” E prosseguiu por uma trilha própria:
“Meu medo é real, então esse poderia ser o começo desta carta a você. Mas não. Nunca afirmei nada nem você me perguntou. Nosso estranhamento foi e continua sendo maior. Calei o medo e você calou uma eventual curiosidade a meu respeito. Assumimos os dois sua suspeita frente às palavras.”
Essa carta, no caso, é escrita pela filha mais velha, aquela que foi preterida na disputa entre a irmã mais nova pelo genro, em que ela vai expondo suas feridas guardadas entre anos e anos de silêncios e não ditos. A raiva que ela guarda por ver o ciúme que seu pai sentia ao ver a proximidade dela e seu irmão mais velho, a quem chamava de “frato” ou, inclusive, julgando o fato dela ter quase 40 anos e sentir demais, falar demais, brigar demais, e desejar, mas ali, vendo a doença do pai com o mesmo medo que teve de enfrentar a vida, tal como uma Sherazade às avessas.
Por fim, uma outra perspectiva interessante trazida por Alice é a do irmão que perdeu um dos olhos. Diante dessa limitação de visão, ele se tornou alguém que quis ampliar uma outra forma de ver o mundo e se tornou escritor, assim, passou a ver a sua situação, o mundo, sua vida e toda a sua família de uma perspectiva que vai além de sua cegueira parcial. Sobre sua limitação, diz que é diferente que perder um braço ou um dente:
“Um olho cego é outra coisa. Não é uma limitação de movimento. É uma delimitação de foco.”
Para em seguida, refletir como isso foi determinante para uma vida de dor que, no fim das contas, é a dor que invadiu toda essa família, atravessou todos esses personagens e marcou a escrita deste romance que foi traçado por palavras talhadas em palavras de dor:
“Descobri como a dor pode ser incontornável, soberana sobre o tempo e o espaço. Suspeito que nossa própria casa sofreu com essa dor. A dor invadiu argamassas e conduítes, ossos e nervos. Nenhum sofrimento poderia se comparar à dor de, após deitar-me coberto pela expectativa de ser acordado por um grito de minha mãe, me saber órfão ao abrir os olhos sem ninguém chamar por mim.”
Escrever para Alice, ao que me parece, é investigar. É colecionar. Neste texto, eu poderia ter olhado por vários lugares, como as referências das diversas obras que aparecem como citações, como por exemplo O deserto dos tártaros, de Dino Buzzatti, Cìa Cuervos, de Carlos Saura, Caixa Preta, de Jennifer Egan, Star Trek, entre outros. Ou então, poderia citar que a obra é entremeada por um momento político bastante relevante, o impeachment ou golpe parlamentar sofrido pela presidenta Dilma Rousseff, momento de profunda instabilidade política do Brasil que, evidentemente, atravessou também a família, muito embora pelas bordas das questões internas.
Poderia também mencionar o fato de que este patriarca da família era também alguém que se beneficiou da política no momento do confisco das poupanças pelo governo Collor, tendo virado uma espécie de agiota para as famílias pobres e depois virado dono de quase toda a região, mas essa não é a história principal. Essas são histórias que atravessam a história principal, de filhos deste homem, moradores desta grande casa e que deveriam ser coadjuvantes dessa história. Mas como a vida é uma espiral de matéria e memória, eles formam o sumo daquilo que escapa destas vidas.
Por fim, deixo aqui uma reflexão de Alice sobre a própria atividade de escrever sobre a coragem de, diante deste mundo, ainda acreditar na arte das palavras:
A pretensão de escrever é um atrevimento totalmente dispensável ao mundo, frases para se perderem junto a tantas outras sem brilho ou poder. A coragem de supor tal ousadia, no entanto, me surgiu no confinamento nestas ruínas sem tempo nem espaço, na necessidade de falar dos meus filhos. Eles só poderiam ter nascido de mim. Escrevo por sua existência.
Inventário das Palavras é um livro para recordar.