Diante de um tribunal, na frente de uma juíza, tendo na plateia pelo menos dezenas de indígenas, talvez uma centena delas, uma advogada de defesa de um dos assassinos do ativista Javier Chocobar afirma que “até os réus comprarem e tentarem fazer garimpo naquela terra, o povo indígena Chuschagasta sequer existia enquanto uma identidade”.
Acho que esse é um dos grandes motes não só desse filme e desse povo, mas de todos os povos que lutam pela sua identidade e a demarcação de suas terras: a necessidade de provar que havia uma “identidade” antes da chegada dos invasores, como se responsabilidade recaísse não em quem invadisse, mas no invadido que, por não ser necessariamente um “povo”, não tivesse direito a uma “terra”.
Assim, quem já é considerado alguém, ou compra, ou tem “legitimado” por lei aquele pedaço de espaço geográfico se sente no direito de não só usurpar a terra de quem já estava por ali, como o faz por direito, afinal, trata-se de uma “terra sem povo e um povo sem terra”. Esse argumento, por exemplo, serviu para a colonização da Palestina por Israel, mas também do Brasil pelos portugueses, da América indígena pelos espanhóis, e das diversas Áfricas pelos europeus, e assim vai.
Uso esses exemplos porque como caso isolado talvez vejamos cada caso específico de forma nebulosa. Agora, tendo isso em mente, observe o horror desse caso: Em Nossa Terra, documentário argentino de Lucrecia Martel, acompanhamos o julgamento do assassinato de um ativista indígena argentino chamado Javier Chocobar.
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Através destes momentos cruciais em que acompanhamos os algozes nos bancos dos réus, a diretora se volta tanto para os detalhes do seu assassinato enquanto membro da comunidade Chuschagasta, como para a organização e luta de sua comunidade por suas terras ancestrais que foram vendidas a esse grupo de latifundiários.
Através do recorte entre passado dos habitantes da comunidade, suas fotos, histórias e narrativas de origem, conhecemos também uma longa história que remete ao colonialismo e ao dia em que o grupo chegou para “preparar a terra para o garimpo”. Desta invasão, resultou o crime do ativista.
É interessante ouvir a voz dos próprios assassinos e seus argumentos para o crime: eles retratam os indígenas como bárbaros que cercam, que fazem emboscadas, que se armam com pedras, com paus, embora eles próprios sejam os policiais treinados.
Em suas narrativas pessoais, eles são cidadãos de bem, com filhos, família, que serviram à pátria, à polícia e reagiram porque foram treinados. Se sentem profundamente injustiçados não porque mataram, mas porque a lei sempre os defende, por que os condenaria agora? Um discurso muito parecido com as organizações das milícias que tomaram conta de nosso país. Alguém que é dono de terra e que organiza seus capangas para fazer os serviços sujos de poder e domínio territorial.
Outro ponto curioso é que temos um registro filmado do caso gravado por um dos próprios réus que, achando que estaria produzindo sua defesa, acabara se incriminando. Em termos de forma, é particularmente curioso ver esse “filme” gravado por ele sendo visto por indígenas, juízes, advogados e réus, de dentro de um tribunal porque temos um jogo em que nós, no cinema, vemos eles vendo eles próprios matando um ativista. É forte demais.
O caso ocorrido em 2009 ganhou grande repercussão e resultou num processo judicial lento, mas que pode finalmente trazer visibilidade para a comunidade Chuschagasta. Após 9 anos de longa espera desde a morte de Chocobar, o caso foi a julgamento, momento em que Lucrécia Martel resolveu registrar para a produção do documentário que, em seu lançamento, foi o vencedor do Prêmio Films After Tomorrow no Festival de Locarno 2025.
Um filme de tamanha intensidade que “Nossa Terra” parece que se torna um lema coletivo, de todos nós que, ao assistirmos esse assassinato, precisamos virar cúmplices da luta pela libertação de todos os povos. Da Palestina, aos Curdos, aos Chuschagasta, todos merecem nossas terras.
Filme assistido duranto o Festival do Rio 2025
Veja o trailer: