A Literatura Neomarginal de Vitor Miranda e a crueza em “Os Ratos Vão Para o Céu?”

É estranho o quanto a morte nos persegue desde que somos muito pequenos. Não essa coisa que a morte causa, mas ela mesma, crua, nua e sem pudor. O caixão aberto na sala, o choro desorganizado nos corredores, o cheiro de flores pela casa, o “cheiro do nada” no cemitério.

Assim, ela vai nos moldando desde a infância, desde que não nos percebemos conscientes. Em uma época em que vimos do gozo dos animais na frente das igrejas e nos rimos e regozijamos nos prazeres da carne ou nos lamentamos diante do sofrimento alheio.

Entre mortes e não mortes, vamos nos entrelaçando com a escrita do menino Vitor, digo do homem Vitor, que ao revisitar a infância nos acalenta com seus 24 contos tão profundos e tão sinceros e de repente não sabemos se é sobre ele ou sobre um pouquinho de nossas próprias infâncias.

Eu mesma, vivi várias vezes a morte. A morte do avô, do tio e de tantas outras pessoas, que não consigo mais lembrar do rosto, do nome, de quem eram e qual a diferença fariam na minha vida. Eu lembrei da morte e de como ela ainda me incomoda, mesmo depois de tanto tempo.

Lembrei também de que mesmo quando a morte não era encarada, quando era vista pelas frestas da janela, ela ainda insistia firme e forte em contrastar com a infância ou coexistir com esse momento tão único na vida das pessoas.

Alguém sabe dizer se… “Os Ratos Vão Para o Céu?”

Durante a leitura de ‘Os ratos vão para o céu?’(2025), de Vitor Miranda, é possível perceber uma inocência suplantada pela acidez da morte e da incapacidade dos adultos de perceber que mesmo as crianças, elas todas, percebem o mundo com lentes de aumento, que as estarrece para sempre.

‘Os ratos vão para o céu?’/ Fonte: Reprodução da Internet

Foi no conto com o mesmo título que me apeguei de vez ao livro. Me apeguei com todas as forças naquele momento ímpar, em que é possível sentir a estranheza da morte.

ainda hoje vejo a imagem dele afundando, já sem vida. um pouco de nossas vidas se afundou com ele no fundo daquele balde e a gente sabia disso” (p. 42).

Como disse antes, os contos demonstram uma crueza que nada tem de óbvia e isso se percebe claramente quando lemos ‘O velório’, e com aspereza na medida certa podemos refletir sobre o quanto a morte não se encerra, nem nos absorve:

aquele corpo, que não significava nada além de uma efêmera decoração, estava elegante demais pra uma festa onde ele é o único a não gozar a vida. o homem sucumbe oprimido num terno que diferença faz a elegância se na morte ninguém vive de aparências?” (p. 59)

E já que estamos falando de aparências, o autor nos conduz por seus contos utilizando frases complexas em sua essência, simples em sua forma, separadas por pontos e continuadas com letras minúsculas.

‘Os ratos vão para o céu?’ (2025) é uma representação potente da literatura neomarginal, composta por uma escrita diversa, a partir de um sujeito que nos mostra que é possível escrever de si para o outro e construir pontes, não mais muros.

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