“Canção de Ninar”, de Leila Slimani: um jogo de espelhos que esconde em thriller romance sobre pertencimento

De tudo o que se passa com uma pessoa, o que vemos é apenas a parcela mais íntima: aquela que planejamos e controlamos, aquela que tornamos pública porque acreditamos que, assim, seremos recompensados de alguma forma. Para conhecer alguém, precisamos procurar aquilo que escapa da pessoa, aquilo que surge para além do planejado, das formas traçadas e dos acordos públicos. Em outras palavras, poderíamos dizer que uma pessoa é tudo aquilo que conseguimos ver. Cada um de nós é basicamente uma transparência. 

O mesmo podemos dizer de literatura, afinal, a arte nada mais é que um registro da imaginação daquilo que somos. Algumas obras literárias, a fim de traçar uma ideia, um conceito ou o que quer que seja, por vezes se oculta através de outra coisa, outros gêneros literários e formas, de modo a trazer à tona não aquilo que o gênero escolhido diz, mas aquilo que ele é incapaz de dizer. São obras que, por assim dizer, dizem também uma transparência, dizem aquilo cuja palavra enquanto forma não pode e, por isso, falam pelas transversais da linguagem. Este é o caso do romance Canção de Ninar, da marroquina Leïla Slimani. 

Canção de Ninar conta a história de Louise, uma “babá perfeita” que é contratada pelo casal Paul, um britânico, e Myriam, uma imigrante marroquina, para cuidar de seus dois filhos Adam e Mila. Louise, pequena, esguia, loira, em torno dos seus 40 anos, tem a capacidade de fazer muito mais do que dela se espera. Silenciosa, quase invisível, cativa as crianças e cuida de tudo na casa lavando a louça, varrendo e arrumando o que mais for necessário. 

Porém, logo nas primeiras páginas do livro, descobrimos uma coisa horrenda: uma das crianças está morta, a outra está para morrer e a mulher que cuida delas está ensanguentada após tentar cometer suicídio. O caso bárbaro, agora, é interrompido para sabermos os preâmbulos dessas mortes. Por que essa babá teria cometido esse ato extremo?


Leïla usa em Canção de Ninar um recurso particularmente especial: ela estrutura o romance na lógica de um thriller. O assassinato, no começo, parece indicar que o livro será para revelar os motivos pelos quais aquele crime aconteceu, de modo que nossa leitura é automaticamente acionada para isso: identificar na assassina, nas crianças e nos seus pais os motivos dessa mulher ter chegado a esse gesto. Somos, assim, também investigadores desse caso, dessa história que, no entanto, não é a história de um crime, mas uma história sobre pertencimento. E isso não é algo que fica escondido, ao contrário, o problema do pertencimento, diante de uma luta que se dá entre classes, é revelado através de um caminho de pistas falsas, em que somos levados a crer que estes abismos poderão ser derrubados através do contato com as crianças:

“Ela queria retê-los, agarrar-se a eles, arranhar o chão de pedra. Ela queria colocá-los em uma redoma, como dois dançarinos imobilizados e sorridentes, colados ao pedestal de uma caixa de música. (…) Ela se contentaria em observá-los viver, em agir na sombra para que tudo ficasse perfeito, para que a máquina nunca parasse de funcionar. Nesse momento ela tem a convicção íntima, a convicção ardente e dolorosa de que sua felicidade pertence a eles. Que ela é deles e eles são dela.”

Louise, entretanto, apesar desse desejo metafísico de se fundir nas crianças que deveria cuidar como um trabalho, é incapaz de construir essa subjetividade de modo a tornar este pertencimento em algo que se realize em sua vida. Para além da tarefa de cuidar, pouco resta para ela. Um exemplo está na personagem de sua filha: uma figura fria, que não se sente pertencente a lugar nenhum e foge do contato da mãe. 

Enquanto, com as crianças de quem era babá, ela vivia intimamente uma mistura entre obsessão e afeto, percebemos que diante dessa profissão do cuidado, o cuidado do afeto se esvazia, a ponto de Stéphanie, sua filha, dizer:

“Durante toda a sua vida, ela tinha tido a impressão de incomodar. (…) Ela tinha medo de bloquear a passagem, de trombar com alguém, de ocupar uma cadeira que alguém queria. Quando falava, se exprimia mal. Ria e ofenda os outros, por mais inocente que fosse seu riso. Por fim, desenvolvera o dom da invisibilidade e, consequentemente, como se estivesse mesmo destinada  a isso, tinha desaparecido.”

Neste ponto, penso que Canção de Ninar esconde um jogo de espelhos que reflete as questões de classe e, principalmente, de imigração de grupos que moravam nas colônias francesas do norte da África como Argélia, Marrocos, entre outros. Isto com uma diferença, neste caso, o espelho está invertido: Myriam é uma marroquina, mãe de classe média que decide voltar ao mercado de trabalho, casada com um homem branco que contrata uma empregada. Louise é uma mulher loira que é contratada por Paul e Myriam e oferece suporte na criação das crianças.

O que temos, então, é a experiência da imigração através de um negativo: trata-se da experiência de uma imigrante em uma personagem que não é imigrante, sendo observada por uma imigrante que, de alguma maneira, consegue escapar do destino comum de pessoas que emigram para a Europa. 

Leila Slimani: autora franco-marroquina

Isso leva o leitor a acompanhar com mais intensidade,os estranhamentos desse papel silencioso da babá e de sua subserviência, inclusive, naquilo que não lhe era demandado. Louise, de alguma maneira, se subjetiva através de sua profissão e vê no ato de fazer mais do que lhe é demandado uma forma de ser reconhecida, de existir, de sair de sua invisibilidade. 

Porém, ela faz isso justamente no guarda-chuva das castas da imigração: é uma autonomia e reconhecimento que surge do ato de servir. Sem ressaltar que isso é algo necessariamente ruim, Leïla nos diz revela uma subjetividade construída na estrutura colonial: são os patrões que dirão se sua função no mundo está sendo exercida ou não. 

A armadilha disso é o rastro de sofrimento que isso causa na pessoa que serve. Ao não construir uma identidade para além dessa chave, a presença de sua filha vira um pesado incômodo, sua vida social e pessoal se esvazia e, no primeiro sinal de que será dispensada, de que seus serviços não serão mais necessários, seu mundo parece desmoronar. 

Diante disso, Myriam, a mãe das crianças,vive uma experiência similar, mas às avessas: ao conseguir viver em outra chave, reconhece em si um sentimento de uma livre culpa pela incapacidade de ser reconhecida como a boa mãe, que conhece e sabe os atalhos para o cuidado dos filhos. E o leitor, diante dessas duas figuras, experimenta quantos descompassos e deslocamentos emergem quando intencionalmente uma autora desfaz um horizonte de expectativa que ressalta por um mistério a se descobrir. 

Ao chegar ao final da obra, com o ato do crime cometido e confessado lá no começo, o romance se esvazia, porque traz uma espécie de alívio diante do horror. É uma saga que se acumula de tal forma que o desfecho, qualquer que seja, acalenta a narrativa. A questão é que o rastro daqueles sofrimentos vazam para nós. Como mudar essas relações de classe tão enraizadas?

Canção de Ninar, de Leila Slimani, inverte uma chave comum das obras sobre imigração e adaptação de imigrantes nos países colonizadores europeus, desnaturalizando os papéis sociais exercidos pelas personagens. Não à toa, o livro se tornou um best seller chegando a vencer o Prêmio Goncourt. Não à toa, também, tantas pessoas ficam confusas diante de sua leitura, afinal, quando o mundo parece invertido, às vezes nossos olhos não conseguem ver além das nossas próprias lentes.

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