“Cartografia para caminhos incertos”: Ian Fraser recupera mundo à lá Calvino para criar obra mágica e pulsante

A imaginação é uma viagem. Talvez essa seja a forma mais simples para compreender como o ato de imaginar age dentro de nós. E isso não é apenas um recurso retórico, mas quando saímos do real para pensar no possível, e até no impossível, o que fazemos é justamente uma viagem: um passeio pelas ideias, do pensamento pelo mero pensamento, sem buscar saídas, respostas práticas. 

Cartografia para caminhos incertos, de Ian Fraser, romance publicado pela Intrínseca em 2025, é uma bela obra para pensarmos a literatura como uma abertura para a imaginação como forma de transitar pelo pensamento, pela linguagem, pela infância, pelo amor e pelo desfazimento deste mundo cartográfico repleto de fronteiras. 

Falar da sinopse do livro já revela um pouco disto: Redenção é uma cidade baiana fundada por uma Bruxa que é protegida por uma pedra encantada. A cidade não tem um lugar fixo e fica mudando de lugar no mapa de modo que é quase impossível que alguém a encontre. Porém, ali está o que se chama de “a mais pura essência da humanidade”.

Em Redenção vive Mané, um aspirante a poeta que quer encontrar a melhor forma de escrever seus poemas e, incentivado pelo seu namorado Jeremias, vai buscar um beijo perfeito. Ele cai de Redenção. Desterrado, Mané viaja por toda a Bahia, dos interiores às grandes cidades, em busca de reencontrar sua cidade e seu amor. Porém, no caminho vai encontrando figuras singulares, sociedades únicas, situações inusitadas, senão estapafúrdias. 

Uma dessas figuras, por exemplo, é o Coronel Ângelo Carlos Mineiro, um homem literalmente partido ao meio que travava uma guerra com sua outra metade que vivia do outro lado do Rio São Francisco, o Velho Chico. No entanto, esta é uma guerra impossível: de um lado estão os Bacorejistas, grupo conhecido pela audácia, pela liberdade e incapacidade de seguir regras. Do outro lado, temos os Prudentistas que, ao contrário dos adversários, só agem após muito estudo, pesquisa e, claro, prudência. 

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Nesta guerra, Bacorejistas não fazem nada porque são demasiado desorganizados e indolentes. Quando fazem, são tão imprudentes que acabam se perdendo diante da grandeza do Velho Chico. Do outro, os Prudentistas são tão prudentes que se protegem tanto e planejam tanto que não saem do lugar. As duas metades do Coronel, assim, separadas, são incapazes de se unir e a guerra promete se estender. 

Ian Fraser inunda seu romance dessas figuras espetaculares e muito reais em suas inverossimilhanças. No entanto, não faz isso sem fincar os pés no que há de melhor na literatura universal, reunindo uma série de referências nem sempre claras de grandes obras da literatura. O próprio autor nos oferece um pouco do seu procedimento de escrita:

“Criar é olhar para trás, caminhando para frente, seguindo em direção ao abismo e acreditando que o chão estará lá”. 

O ato de criação é um gesto de olhar para o passado, mas sem se ater a ele, sem ser um “passadista”, mas justamente manter o olhar em direção ao futuro, a constantemente reinventar o passado. Uma ação que parte da ideia de que “o nada nunca existiu”, ou seja, o passado é realmente referência para tudo, mas não âncora, algo que nos amarre no ato de conservar o que existe.

A escrita de Fraser é simples e vaga livre, lembrando algumas vezes a escrita de Calvino, como no caso de obras como o Visconde Partido ao Meio, O Cavaleiro Inexistente e As Cidades Invisíveis. Temos, assim, personagens que podem ser inventados para além do verossímil e cidades que são imagens, projeções de mundos imaginados que colocam em xeque uma relação tradicional de tempo;

“Carregamos o ontem na cabeça e arrastamos o hoje nos pés (…) O tempo não está embaixo de nós, ele está acima de nós. (…) As pernas jamais podem esquecer o peso de ontem, caso contrário, achamos que os problemas somem no simples andar dos ponteiros. Por isso gosto desta torre. O tempo não apaga nada. Carrega tudo o que veio antes de nós. Ou quase tudo.”

Em uma literatura contemporânea que se debruça cada vez mais na autoficção, ou seja, na biografia como referência primordial para a escrita, tentando nos convencer de que apenas “temas importantes” são relevantes para a literatura de nosso tempo, Cartografia para caminhos incertos aposta na invenção como ferramenta fundamental para nossas mentes já exaustas do fluxo de informações da atualidade. Uma obra que dança, navega e afasta o mapa de seu horizonte porque o bom da vida está naquilo que a gente ainda não imaginou. 

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