O voo do pássaro caído, Rafael Nogueira Fernandes publicado pela editora Bestiário em 2024, traz história de história de amor e imprevisibilidade.
“Desilusão do sonhar acordado
Cílios de Limusine
Ah, querida, com seu lindo rosto
Derrame uma lágrima no meu copo de vinho
Olhe para esses grandes olhos
Veja o que significa para mim
Bolos e milk-shakes
Sou um anjo desiludido
Sou um desfile de fantasias
Quero que saiba o que penso
Não quero que adivinhe mais
Você não sabe de onde eu vim
Nós não sabemos para onde vamos
Jogados na vida
Como afluentes de um rio
Flutuando rio abaixo pegos pela corrente
Eu te levo
Você me levará
É como poderia ser
Você não me conhece?
Não me conhece até agora?”
David Jewell.
O poema recitado à margem do rio para Jesse e Céline no filme Antes do Amanhecer evoca a imprevisibilidade da vida que, junto do romance, é o grande escopo daquela história. Duas pessoas se conhecem em um trem, em um país estrangeiro, e após conversarem decidem descer em uma parada e passar a noite juntos até ambos terem que seguir seus rumos. Uma curiosidade é que o drama romântico de 1995 foi inspirado em uma história real vivida pelo diretor do filme, Richard Linklater, que conheceu uma mulher em uma loja de brinquedos na Filadélfia, em 1989, e após esse encontro eles passaram a noite andando pela cidade e conversando.
Rafael Nogueira Fernandes em O voo do pássaro caído, publicado pela editora Bestiário em 2024, troca o trem para Paris e a loja de brinquedos por uma livraria de shopping em Campo Grande, Mato Grosso do Sul como o cenário do início da sua história de amor e imprevisibilidade.
Em uma ponta temos Olga, que não imaginava que o ato de pedir ajuda a um livreiro poderia mudar para sempre a sua vida. Tudo acontece tal como no filme alemão Corra, Lola, Corra, em que micro decisões podem fazer toda a diferença. Nesse caso, a devolução de um livro com erros de impressão.
Na outra ponta está Alex, que nem vendedor de livros era, mas foi confundido com um enquanto passava o tempo folheando livros, como vários de nós já fizeram durante a vida. Tudo completamente aleatório. Ou tudo estava em seus devidos lugares?
É (quase) o enredo clássico de um romance, como no filme citado logo no início do texto, mas há algo inusitado na narrativa do Rafael: quem narra essa história é o Amor. O Amor como um ser onipresente e onisciente e que de um longínquo futuro revisita essa história em específico.
“Eis que quero lhe apresentar a história apócrifa de dois jovens que se amaram e se odiaram em uma mesma noite, se odiaram por terem se conhecido no momento em que o destino os empurrava para caminhos opostos, assim como a energia escura faz com as galáxias.”
Há realmente esse amor e ódio que Jane Austen já explorava em Orgulho e Preconceito e que traz um toque de enemies to lovers para a narrativa.
Quando Olga e Alex se conhecem, a atração mútua e a espontaneidade os leva a esticarem o esbarrão na livraria para um show cover do Pearl Jam, mas há também um encontro de egos do qual saem muitas faíscas:
“— Aaiaia…eu falo que te conheço de alguma forma e você acha que é migué meu para tentar te conquistar.”
(…)
“— Na verdade, Alex, você só me conhece a poucos minutos, nem sabe como eu vim parar aqui em Campo Grande. (…) Você, como todo esquerdo-macho, só quer mostrar sua “hipotética” inteligência para me mostrar que você não é como todo mundo etc…é cansativo”
Até que com o passar da noite, o avanço da madrugada, e após intensas conversas sobre a objetividade de Deus, a abstração do amor, a constelação de Órion, o destino, as aleatoriedades da vida, os primeiros amores e traumas, e após algumas ou muitas garrafas de vinho também, as armaduras começaram a cair, revelando duas almas perdidas e frágeis.
Há muito papo cabeça, analogias com o cosmos e inúmeras referências literárias e de cultura pop. Star Wars, Kafka, Lacan, Carl Sagan, Dostoiévski, a novela Avenida Brasil, o ET de Varginha, a série Dark e até Crepúsculo, o que sempre me tira um sorriso. Tal recurso permite ao autor despertar da profundidade a descontração, além de ser uma forma de aproximar o leitor, que pode até cantar junto, quando uma das referências musicais é Renato Russo.
Cada personagem no texto do Rafael traz a bagagem que lhe faz singular, único, assim como nós: um universo em particular. Olga, mais de humanas, relativista e sarcástica. Alex, mais de exatas, pragmático e realista, mas com um interesse peculiar por filosofia. Esses dois universos se encontram na mágica do “inédito inexplicável” e enquanto os dois discutem “sobre a vida, o universo e tudo mais”, mais a vontade um com o outro vão ficando, mais apaixonadas por como a mente do outro funciona e mais conscientes de si.
O livro é, sim, uma grande viagem por questões filosóficas a respeito da condição humana, mas que conversa de maneira muito fluida com os dramas dos personagens. E conforme a narrativa fica mais íntima, os dois se despem das convenções sociais e passam a olhar para dentro e para fora de uma nova maneira e nos levam com eles.
Porém, de todas as reflexões levantadas, acredito que a do amor na modernidade seja a que converse de forma mais intensa com os caminhos da narrativa.
Primeiro, por colocar o narrador, o Amor, no centro da discussão. Rafael cria uma voz narrativa lírica, questionadora da própria natureza, assim como os personagens da história que Ele mesmo relata ao longo dos capítulos, separados principalmente de acordo com os tópicos das discussões entre Olga e Alex ( Vinho, órion e outras drogas; Vinho, órion, mais vinho e outras drogas pesadas e etc). Através dessas páginas, o Amor mostra-se sustível às paixões dos amantes, como uma espécie de Deus que não sabe de onde veio, nem para onde vai, e que se alimenta dos romances mundanos.
Segundo, ao demorar-se sobre o amor, Rafael nos encaminha para o surpreendente final do livro.
Olga e Alex refletem sobre como o amor poderia ser a última fronteira contra a dureza e a frieza do mundo contemporâneo, o que me lembrou 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono, livro de Jonathan Crary, que coloca o sono como esse limite ainda não ultrapassado pela lógica capitalista da mercadoria. Na ficção de Rafael Fernandes, O Amor seria essa resistência, essa última barreira.
“É impossível amar, ver o mundo e a beleza a cada esquina e, ao mesmo tempo, ser indiferente a toda sorte de dor, sofrimento, miséria a antivida que há. Por isso, eles querem matar o amor, querem nos transformar em robôs compradores de coisas, de qualquer enlatado, condenados em financiamentos por meio de parcelas intermináveis por toda a vida. Assim, não teremos tempo para amar, ler escrever, dançar, tudo isso reduzido a “isso não dá dinheiro, não enche barriga, não paga a conta do fim do mês”. Vão para o inferno esses malditos!”
Deus está morto. O Amor está morto.
Será?
Pensamentos como esse varam a madrugada, mas com a chegada de um novo dia, segredos são revelados (sim, temos reviravoltas) e tanto Olga como Alex precisam sair daquele tempo em suspenso e encarar um mundo no qual ambos precisam seguir seus caminhos, diametralmente opostos.
E mais ou menos como em Antes do Amanhecer, Rafael deixa a cargo do leitor se os personagens ficam ou não juntos, mas tudo isso com um toque distópico e de ficção científica que amarra toda a narrativa de forma inventiva e que dá ainda mais sentido à excelente escolha de ter o Amor como narrador.
Sobre o autor:
Nascido em Umuarama, PR, Rafael Nogueira Fernandes passou sua infância em Iguatemi, situado no Cone Sul do Estado do Mato Grosso do Sul. Adolescente, mudou-se para Campo Grande, onde graduou-se em Direito em 2017 e posteriormente se especializou pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). Antes de sua carreira no serviço público exerceu a advocacia ativamente. Hoje, desempenha a função de Juiz Leigo nesta mesma cidade. Desde cedo, sua paixão pelas narrativas dos mais velhos, enriquecidas pelos ouvintes jovens da região, acentuou seu amor pela leitura e pela escrita. Este amor molda profundamente sua visão e interpretação do mundo, influenciado por figuras literárias como Guimarães Rosa, Manoel de Barros e Dostoiévski. Publicou em 2022 uma antologia de contos chamado “O Megalomaníaco medíocre e outras histórias. “O voo do pássaro caído” é sua segunda obra publicada e seu primeiro romance.