Duas mulheres em uma, da autora egípcia Nawal El-Saadawi, narra a história de uma jovem mulher em sua jornada para ser quem verdadeiramente é, e não como todos à sua volta esperam que ela seja — uma mulher esforçada, de conduta e modos impecáveis ou livre e determinada?
“Ao questionar, ao se ver diante de uma ambiguidade social que não a representa, Bahiya Chahin é uma ameaça, porque se torna aquilo que o entorno social mais teme: uma desobediente. E a desobediência, bem sabemos, é política.”
da orelha de Micheliny Verunschk
Bahiya Chahin é uma jovem estudante de 18 anos que vive no Cairo e questiona constantemente seu papel na sociedade, rejeitando as expectativas de submissão e obediência. Ela busca sua verdadeira identidade, resistindo às pressões familiares e sociais que tentam moldá-la conforme os padrões tradicionais.
Nessa trajetória ela enfrenta fortes sentimentos internos que conflitam com o ambiente externo. Seu desejo de libertação significa se tornar parte do mundo, e isso só pode ocorrer com a luta por um Egito livre. A história destaca a batalha de Bahiya para se libertar das amarras que limitam sua liberdade e expressão pessoal, simbolizando a luta de muitas mulheres por autonomia e reconhecimento de sua individualidade.
Publicado originalmente em árabe em 1968 no Egito, Duas mulheres em uma é uma narrativa transgressora e vanguardista, cuja protagonista desafia abertamente os papéis de gênero estabelecidos.
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Leia 5 trechos de “Duas mulheres em uma”
“Desde a infância ela sentia a tragédia sobre seu corpo e a carregava consigo em cada passo, dentro de cada uma de suas células. Um desejo irrefreável de voltar de onde viera, de sair do campo da gravidade da Terra, de se tornar um corpo sem peso, sem superfície, sem limites externos que o separassem do entorno. Um desejo irrefreável de se dissipar como partículas de ar no universo e se desvanecer de modo completo e definitivo.”
“Sentou-se no bonde, com as costas coladas às costas de um homem, o rosto no rosto de um homem, à sua direita um homem, à sua esquerda um homem e à sua frente filas de homens sentados amontoados em silêncio. A metade inferior do corpo deles estava imóvel, petrificada nos assentos, e a metade superior balançava com um movimento lento e regular como o do bonde. Quando o bonde parava, a cabeça dava um solavanco para trás, fazendo-os abrir os olhos, assustados. Uma vez assegurados de que a cabeça ainda estava no lugar, fechavam os olhos e dormiam.”
“O que ela sentia por ele era algo maior do que aquilo que seus ouvidos podiam escutar, do que seus olhos podiam ver, do que seu nariz podia cheirar e do que seus dedos podiam tocar. Ela teve certeza, naquele instante, de que o ser humano tinha outros sentidos desconhecidos, ainda não revelados, que jaziam latentes, encolhidos no fundo da alma. E eles tinham mais capacidade de sentir do que os sentidos conhecidos, pois eram verdadeiros e naturais: não foram corrompidos pela educação em casa ou na escola, nem por regulamentos, leis, tradições, nem por nada, como o rio que corre livre sem barragens, ou a chuva que cai do céu sem obstáculos nem impedimentos, estancando por si só ao ser absorvida pela terra.”
“‘Mas como podemos nos entender com as pessoas?’, ela perguntou. ‘Isso é impossível, Bahiya. As pessoas não querem uma pessoa verdadeira, se acostumaram a falsificar tudo, até a si mesmas. Com o passar do tempo, esqueceram sua forma verdadeira. E, quando veem uma pessoa verdadeira, sua verdade as apavora a ponto de quererem matá-la — ou matá-la de fato. Por isso, essa pessoa será sempre e inevitavelmente perseguida, morta, condenada à morte, presa ou isolada num lugar longe dos outros.’”
“Ela buscava um escândalo, pois apenas o escândalo a salvaria, faria com que todos a banissem. Ela queria ser banida, tornar-se uma pessoa sem pai nem mãe, nem família que a abrigasse e protegesse; a proteção era, na verdade, o próprio perigo. Era um assalto a sua verdade, uma usurpação de sua vontade e existência.”
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Quem é Nawal El-Saadawi?
Nawal El-Saadawi nasceu em 1931 na cidade de Kafr Tahla, no Egito. Formou-se em medicina em 1955 pela Universidade do Cairo e obteve o título de mestre em saúde pública pela Universidade de Columbia em 1966. Primeira mulher a denunciar os efeitos nefastos de práticas culturais opressivas e do patriarcado na saúde física e psíquica das mulheres, fundou em 1981 a Associação de Solidariedade das Mulheres Árabes, combinando feminismo e panarabismo.
Saadawi descrevia a si mesma como uma “socialista-feminista”. Publicou mais de trinta títulos — entre romances, contos, peças teatrais e ensaios —, traduzidos para vários idiomas. Nawal El-Saadawi faleceu em 2021.
Sobre a tradutora:
Bacharel e Mestre em Língua e Literatura Árabe pela Universidade de São Paulo, Beatriz trabalha como professora de árabe, tradutora e intérprete árabe-português. Estudou língua e literatura árabe no Marrocos, na Jordânia, no Omã, no Egito e na França. Integra o grupo de pesquisa Tarjama – Escola de tradutores de literatura árabe moderna, sob supervisão da Profa. Dra. Safa Jubran. Suas áreas de interesse incluem língua e literatura árabes, tradução literária e ensino de árabe como língua estrangeira.
Dados do livro:
Título: Duas mulheres em uma
Editora: Tabla
Autor: Nawal El-Saadawi
Tradução: Beatriz Negreiros Gemignani
Projeto Gráfico: Bloco Gráfico
Número de páginas: 128
Assunto: Literatura árabe
Sobre a editora Tabla:
A editora Tabla tem como foco a publicação de autores do Oriente Médio e do Norte da África, estejam eles em sua terra ou na diáspora. O objetivo é dar voz a literaturas sub representadas no Brasil, estabelecendo pontes diretas num eixo sul-sul. O catálogo busca, portanto, representar a diversidade cultural, étnica, linguística e religiosa dessa parte do globo, a fim de combater preconceitos e estereótipos tão difundidos por aqui.
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